Aproveitando os debates sobre Mbembe por aqui, conto uma das histórias mais maneiras que já vivi na academia.

Lá em 2015, fui chamado para estar na banca de tcc de um brilhante amigo de graduação, Pedro Argolo. O tema é esse da foto: 👇🏾
Como cês podem ver no resumo, o trabalho é extremamente instigante, criativo e de alto nível. Em especial, o debate sobre o conceito de Nomos da Terra, retirado de um texto não muito lido de Carl Schmitt, capaz de inscrever a cartografia colonial na história do direito moderno.👇🏾
Em síntese, Argolo argumenta, a partir de Schmitt, que o direito moderno (e a legitimação do Estado) dependem das práticas concretas do colonialismo, especialmente a apropriação da terra alheia. O "direito europeu" surge da negação do direito/da normatividade do Outro colonial.👇🏾
Como escrevi no meu livro, "Argolo desenvolve um instrumento metodológico, enraizado na própria tradição europeia, capaz de realizar um duplo deslocamento: a possibilidade de uma filosofia da história reorientada pelo evento da “Consquista” (do colonialismo) (...)
e uma estratégia de leitura com força crítica suficiente para lançar ao texto europeu uma certa “desconfiança” sobre sua pretensa universalidade."

Nessa brincadeira, realiza-se uma releitura do conceito de soberania capaz de incorporar o empreendimento colonial. 👇🏾
Bom, aí volto para o começo da thread. Alguns anos depois, interpelado pela recepção do camaronês no Brasil, fui ler as obras de Mbembe. Comecei pelo tão falado Necropolítica. Logo nas primeiras linhas, o debate sobre soberania e a sensação de estar entrando em águas passadas.👇🏾
Mas beleza, vários falam de Foucault, biopoder, campo como solução permanente e etc. No entanto, no meio do texto, surge Schmitt, justamente para trazer a colônia para o conceito de estado de exceção. Mais, a colônia como fronteira, zonas de guerra e desordem, fora do direito. 👇🏾
A colônia, como materialidade concreta da violência do estado de exceção, que opera a serviço da civilização. Ou seja, Estado e direito moderno (europeus) dependem do desterro e do extermínio - não como abstrações filosóficas, mas como realidades concretas. 👇🏾
Análise e argumento que estavam naquele tcc de um amigo meu que li lá em 2015. Por óbvio, o texto de Mbembe é muito mais antigo e Pedro havia lido e citado. Mas era 2015, Mbembe ainda não era moda no Brasil e ainda estava muito longe de começar a circular na FD/UnB. 👇🏾
E o mais importante: como Argolo ignorou todos aqueles conselhos de "não sonhe na graduação, você não é pesquisador, contente-se com o básico" e a mediocridade da pesquisa jurídica para propor algo absolutamente novo no campo, bem como um original uso de Schmitt no país. 👇🏾
Passei a utilizar Mbembe mais recentemente, mas o tcc de Argolo está lá desde os primeiros textos sobre Haiti e constitucionalismo em 2016. Uma das maiores felicidades foi juntar algumas das nossas abordagens em outro artigo. Fica o link:

publicacoesacademicas.uniceub.br/jus/article/vi…
Sim, eu gosto de dizer que um jovem intelectual negro - um dos mais brilhantes que conheci - foi o primeiro nesse país a trazer Schmitt para falar de colonialismo, fugindo dos textos canônicos no curso de direito e das análises centradas no nazismo e autoritarismo europeu. ❤️
E ah, sim, nas referências do tcc, além de Schmitt e Mbembe, tem muita coisa que hoje é mais falado no Brasil, mas que naquela época pouquíssimos se utilizavam, como Susan Buck-Morss, Domenico Losurdo e Étienne Balibar. 💪🏾😍

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12 Mar
Gente, o ensino superior público esqueceu o que é greve? Nunca houve uma ofensiva tão grande contra o setor e a resposta é fingirmos que não está acontecendo nada? Continuar com prazos, bancas e corrida lattes no meio do fim do mundo? Sério?
Parece que por falarem tanto que o ensino público é isso e aquilo, adotou-se a tática de ficar na moita para não chamar a atenção, evitar o menos pior. Bom, não está adiantando. Quando acordarmos, talvez nem sistema público exista mais para se lutar.
Gente, eu sei que muitos de nós esquecemos. Mas greve não é "parar": greve é espaço de comunicação, de orientação política e de intervenção. Enquanto muitos aqui estão com medo, outros setores já começaram a se articular. Deveria ser papel da universidade intervir nesse processo.
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10 Mar
Tem uma parada. A vida pública foi tomada por tanta gente medíocre nos últimos anos (e não só na política, basta ligar a televisão ou ler um jornal), que escutar Lula é um bálsamo. O Brasil sempre foi um país de grandes figuras. Que essa era dos medíocres comece a chegar ao fim.
Independentemente do espectro político. Gente com visão, com conteúdo, que sabe falar com propriedade de diversos temas. O Brasil é um país complicado, mas também não somos pouca merda. A tormenta naturalizou muita coisa ruim, inclusive a completa baixo autoestima. Vai passar.
Houve uma época na pandemia que me refugiei nos antigos Roda Viva. Luiz Carlos Prestes, Florestan Fernandes, Maria Conceição Tavares, Jorge Ben, Dercy Gonçalves, Darcy Ribeiro. Com tanta tristeza, ver aquele tipo de vídeo era a sensação de lidar com um Brasil que havia morrido.
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8 Mar
Como se constrói uma fake news, desinformação e alarmismo desconectado da realidade: no dia em que o judiciário decide finalmente respeitar um pouco da Constituição, preferem assimilar Bolsonaro a Lula como extremos complementares.

Grupos de zap? Nah, toda nossa grande mídia.
Antes de vir com esse papo de que Lula é igual a Bolsonaro (que, com todo respeito, é um atestado de indigência intelectual), a mídia deveria estar informando os porquês jurídicos e constitucionais da decisão. Esse deveria ser o trabalho de uma mídia séria no dia de hoje.
Trabalho de construção de narrativa: explicar a Lava-Jato e seus vícios; como um juiz Zé Ninguém de Curitiba se sentiu no direito de tomar processos para si, como ele violou leis, incorreu em crime (inclusive com apoio da mídia) e contou com suporte de partes do MP e da PF (...);
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1 Feb
Moro e Deltan são o supra-sumo do que faculdades de direito criam diariamente: sociopatas com senso de superioridade, egolatria e mediocridade intelectual. Criminosos em potencial que escondem seus ilícitos na verborragia jurídica e no salvacionismo delirante.
Já circulei muito por conselhos e órgãos universitários e sempre, sempre eram os juristas os primeiros a encontrarem alguma "brecha" normativa, a operarem na exceção, a suspenderem o direito no interesse de alguma parte.
É de se estranhar que qualquer outro curso esteja mais disposto a respeitar a lei do que o direito.

E isso não é exceção, faz parte da estrutura da nossa formação como juristas, que está relacionada a uma função social na organização do poder e das classes no Brasil.
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15 Jan
Diante da impossibilidade de negar a tragédia, a nova mentira das redes bolsonaristas é circular que o STF retirou qualquer competência do presidente para gerir a pandemia.

Absolutamente falso. Na ADI 6341, o Supremo estabeleceu a competência concorrente.

A mentira é recibo.
Além da 6341, que apenas estabelece o que já está na Constituição, no início do caos, outras decisões foram tomadas (ADPF 669 e 672) justamente porque Bolsonaro estava agindo de forma temerária e negligente com a pandemia. Pibic que orientei sobre o tema:

portaldeperiodicos.idp.edu.br/cadernovirtual…
Ou seja, o STF não retirou competências de Bolsonaro, apenas disse que a gestão do Covid deveria ser realizada de maneira concorrente (leia-se: de maneira coordenada entre os entes federativos). Ademais: tentou impedir suas atitudes irresponsáveis e irracionais (...),
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13 Jan
Tava querendo escrever um texto sobre uma certa antipatia que nós brasileiros passamos a ter pela seleção brasileira nos últimos anos. Daí pensando nas origens desse processo, fiquei pensando na Copa América de 1989, com as vaias e rechaço na Fonte Nova.
O momento em que o brasileiro começou a ver a possibilidade de nutrir outros sentimentos para a amarelinha para além da alegria e da tristeza: o ódio e o desprezo. Daí vem 90, a geringonça de Lazaroni, depois a paulatina e completa gringalização da seleção em si.
Mas aí, será que a RAIZ desse processo pode ser mesmo 1989? Peço ajuda aos doutos e universitários dessa nobre rede para vasculhar a GENEALOGIA DO ÓDIO.
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