Os últimos dados levantamos (recuperados de COVID-19, ação neutralizante e até mesmo eficácia de algumas vacinas) têm apontado para um possível escape da resposta imunológica por algumas variantes, como a B.1.351 e a P.1.

Bora dar uma atualizada? Vem comigo!
Vou discutir alguns dados desse preprint publicado recentemente e trazer alguns fios que já foram escritos abordando o tema biorxiv.org/content/10.110…
O SARS-CoV-2 é um vírus de RNA, e utiliza uma enzima chamada RNA polimerase dependente de RNA, que basicamente cria uma cópia do RNA se baseando numa fita existente de RNA.

Durante essa cópia, erros podem acontecer, e existem sistemas de correção, mas algum erro pode passar né?
Cada vez que o vírus infecta novas células/hospedeiros, ele inicia esse processo de cópia.

E é justamente o acúmulo desses errinhos no processo (uma letra perdida no caminho, ou a troca de uma letra por outra, por exemplo) que podem gerar variantes, como a imagem acima ilustra
Como o @AndersonBrito_ explica nesse fio, é um processo que faz parte da evolução dos vírus. No entanto, se a transmissão aumenta/acelera (não adesão às medidas de enfrentamento, pouca restrição/vacinação), temos um risco imenso de ver mais variantes

E dentro das possibilidades de variantes e mutações, se eu aumento o risco de elas surgirem, também posso estar aumentando o risco de alguma variante com mutações de preocupação acabarem surgindo também.

Eis nosso cenário atual
Vimos notícias do surgimento de variantes com o andamento da pandemia. Nesse fio sintetizo temporalmente cada uma com cada fio que eu escrevi sobre elas (famoso fio de fios):

Tem moments também! twitter.com/mellziland/mom…
Recentemente fiz um moments com o que sabemos sobre a P.1: twitter.com/i/events/13679…
Dentro das possibilidades de mutações, as que nos chamam a atenção sem dúvida são as que ocorrem na proteína S. A proteína S pode ser divida em 2 porções:
- S1: responsável por se ligar a célula alvo
- S2: responsável por colocar o RNA pra dentro da célula alvo
Na S1 temos a famosa região RBD ou domínio de ligação do receptor, que também é alvo de algumas mutações que vou falar a seguir.

O RBD (chave) é a parte que interage diretamente com o recept. ACE2, a fechadura da portinha que dá acesso a célula-alvo
No caso da P.1 (Brasil), 3 mutações nos chamam a atenção: K417T, E484K e N501Y;

A variante B.1.351 (África do Sul) também apresenta essas 3 mutações;

A B.1.1.7 (UK) apresenta a N501Y.
Essas mutações despertam o interesse pois elas possuem a capacidade de modular a afinidade com que o RBD interage com o ACE2. Uma das consequências possíveis disso é o aumento da transmissibilidade que vemos com a B.1.1.7, para a qual temos mais evidências science.sciencemag.org/content/early/…
Evidências vem apontando que algumas mutações, como a E484K, podem também modular a ação neutralizante de anticorpos (de pessoas recuperadas ou das vacinas) com o vírus.

O que sabemos em relação às vacinas: twitter.com/i/events/13679…
Em um preprint publicado recentemente, os pesquisadores investigaram as interações da P.1 com soro de pessoas recuperadas (cepa original) e vacinadas*, comparando com a B.1.1.7 e B.1.351.

* Pfizer ou AstraZeneca

biorxiv.org/content/10.110…
20 anticorpos monoclonais* com capacidade neutralizante + coqueteis de anticorpos monoclonais (REGN, AZD...), tiveram sua ação significativamente impactada com um número mostrando nocaute completo da atividade

*a maioria contra o RBD e que impacta na ligação RBD/ACE2
E quando a gente olha pro local desse impacto, vemos que é justamente onde as mutações principais ocorrem, tendo a P.1 um impacto maior que a B.1.1.7, mas similar com a B.1.351.
Também se observa um impacto da P.1 na ação neutralizante desses anticorpos comparados com uma cepa de referência (Victoria SARS-CoV-2/human/AUS/VIC01/2020), indo ao encontro dos dados acima citados
Ensaio de neutralização contra a P.1 também foi feito com coqueteis de anticorpos monoclonais (Vir Regeneron, AstraZeneca, Lilly e Adagio). Novamente, a P.1 tem um impacto significativo, maior para alguns coqueteis (Lilly) do que outros
Chama a atenção que os coqueteis de anticorpos monoclonais da AstraZeneca tiveram um impacto bem modesto, enquanto que os coqueteis da Adagio neutralizaram 100% as variantes.
No artigo eles descrevem no detalhe porque coqueteis como o da Lilly acabaram tendo uma ação neutralizante super impactada. Isso tem a ver com a forte interação desses anticorpos com as regiões 484-486, e a P.1/B.1.351 tem mutação justamente na posição 484 (E484K), por exemplo.
Quem gosta bastante desses detalhes, o preprint tá recheadíssimo, mas pra não me alongar muito no fio, vou ir selecionando alguns dados que acho importante trazer nesse momento. Fica a dica de leitura hehe
A partir dessa extensa investigação observando como é, no detalhe, esse impacto da P.1 nos anticorpos monoclonais, os pesquisadores criaram anticorpos quiméricos, ou seja, modificados para uma parte que eles hipotetizaram que poderia "restaurar" essa neutralização
Na imagem, podemos ver que os anticorpos quiméricos conseguiram restaurar ou melhorar a ação neutralizante na maioria dos casos.
Estudos com plasma de pessoas recuperadas de COVID-19 (convalescentes): coleta 4-9 semanas após a recuperação antes da circulação da B.1.1.7. Também foram coletados plasma convalescente de pessoas que tiveram COVID-19 pela B.1.1.7.
Os títulos de neutralização para P.1 foram reduzidos 3,1 vezes em comparação com Victoria. Esta redução foi semelhante a B.1.1.7 (2,9 vezes) e consideravelmente menor que B.1.351 (13,3 vezes). Ou seja, a B.1.351 impactaria muito mais que a P.1 nesse parâmetro.
Nessa figura, podemos observar um resumo do dado acima.
Ao usar plasma de indivíduos infectados com B.1.1.7, viu-se apenas reduções modestas (1,8 vezes) na neutralização comparando P.1 com Victoria
[FIO EM CONSTRUÇÃO]
Estudo com soro de pessoas vacinadas: Para a vacina Pfizer BioNTech, o soro foi coletado 4-14 dias após a segunda dose da vacina administrada três semanas após a primeira dose (n = 25).
Para a vacina Oxford-AstraZeneca, o soro foi tomado 14 ou 28 dias após a segunda dose, que foi administrada 8-14 semanas após a primeira dose (N = 25)
Pfizer-BioNTech: Os títulos de neutralização contra P.1 foram reduzidos 2,6 vezesm relação ao vírus Victoria
AstraZeneca: Os títulos de neutralização contra P.1 foram reduzidos 2,9 vezes.
Os títulos de neutralização contra P.1 foram semelhantes aos contra B.1.1.7 e apenas uma minoria das amostras não conseguiu atingir 100% de neutralização (diluição 1:20)
Para B.1.351, os títulos foram reduzidos 7,6 dobrado e 9 vezes para as vacinas BNT162b2 Pfizer e ChAdOx1 nCoV-19 AstraZeneca, respectivamente, mostrando um impacto muito mais significativo na ação neutralizante da variante B.1.351 do que a P.1
Esses estudos agregam muitas informações detalhadas sobre esse escape da resposta imunológica por parte da P.1 e da B.1.351 a partir de modificações em posições específicas na proteina S, que mudam a forma de interação de anticorpos com essa proteína por exemplo.
Parece possível que a seleção de P.1 e B.1.351 pode ter sido em parte impulsionada pelo escape imunológico, no entanto, precisamos de métodos robustos para observar e rastrear reinfecções para termos mais dados sobre isso
Num primeiro momento, muita gente pensa que o comportamento da P.1 seria parecido com a B.1.351 pelo conj. de mutações similares que ambas tem. Até observou-se isso no caso de neutralização por anticorpos monoclonais. Mas foi diferente para as vacinas. Explico no próximo tuíte!
No caso de soro convalescente, a neutralização da P.1 (redução de 3x comparado com a B.1.1.7) NÃO foi tão severamente afetada como foi pra B.1.351 (redução de 13x comparado com Victoria).
Para as vacinas, isso também foi observado, indicando que a proteção conferida com a cepa original de Wuhan PODE conferir proteção contra a P.1
Por que existe essa diferença da P.1 e B.1.351? Ainda precisamos entender. Provavelmente a resposta pode estar nas mutações que acontecem fora da proteína S (RBD).
Para a questão dos anticorpos monoclonais, o trabalho traz essa perspectiva das quimeras de levar à descoberta de mais anticorpos com atividade aumentada. Ainda precisamos investigar mais, mas com certeza agrega bastante no nosso conhecimento atual
Dessa forma, em termos gerais, o trabalho aponta para reduções muito maiores pela variante B.1.351, trazendo para discussão a possível necessidade de vacinas atualizadas para essa variante.

E mostra que a redução pela P.1 é bem menos impactante (mas importante).
MELL E A VACINA DA ASTRAZENECA?

Lembram que eu publiquei ontem esse mini fio?

" B.1.351 não é a P.1! Para a P.1, precisamos de estudos específicos - e logo! "

Não podemos extrapolar o dado da AstraZeneca com a B.1.351 para a P.1. Esse artigo que comentei agora deixa isso cada vez mais claro. Existem diferenças importantes no impacto das duas variantes sobre soro de pessoas vacinadas com a AstraZeneca.
O impacto da P.1 pode ser muito menor do que o observado na B.1.351 com a vacina da AstraZeneca.

Lembrando que esse trabalho comentado ontem analisou apenas a ação neutralizante de anticorpos, não analisou a imunidade celular, que pode ajudar em evitar agravamentos
Portanto, calma! Apesar da redução nos títulos anticorpos neutralizantes, espera-se que a imunização com vacinas projetadas contra cepas originais/ancestrais forneça proteção contra P.1, como a vacina da Pfizer e da Astrazeneca (analisadas no trabalho, mas também outras!)
Repetindo: a neutralização de P.1 não mostra uma redução tão substancial por soro com anticorpos policlonais de pessoas recuperadas de COVID-19 ou vacinação e *não há evidência de escape generalizado* portanto, alguma proteção pode ser vista sim.
Esse estudo obviamente tem limitações e uma delas é não ter estudado o impacto na resposta celular. Mas é um preprint muito bacana, bem detalhado e conduzido, fica a dica de leitura para os colegas especialistas hehe

Espero que ajude um pouco :)
ENFIM fio pronto!

@threadreaderapp compile

• • •

Missing some Tweet in this thread? You can try to force a refresh
 

Keep Current with Mellanie Fontes-Dutra, PhD 💉😷

Mellanie Fontes-Dutra, PhD 💉😷 Profile picture

Stay in touch and get notified when new unrolls are available from this author!

Read all threads

This Thread may be Removed Anytime!

PDF

Twitter may remove this content at anytime! Save it as PDF for later use!

Try unrolling a thread yourself!

how to unroll video
  1. Follow @ThreadReaderApp to mention us!

  2. From a Twitter thread mention us with a keyword "unroll"
@threadreaderapp unroll

Practice here first or read more on our help page!

More from @mellziland

17 Mar
Hoje tem #neurofio temático em virtude da Semana Nacional do Cérebro, com vários eventos online no Brasil! E para contribuir, o tema de hoje é sobre LINGUAGEM: por que somos palestrinhas? como isso ocorre? Como é adquirido? Isso muda minha percepção das coisas?

Vem comigo!
Linguagem pode ser entendida como um sistema de sons, símbolos e gestos para a comunicação. O principal papel da linguagem é justamente comunicar algo, repassar uma informação - e por isso seu repertório é imenso. Sempre pensamos na linguagem verbal, mas ela vai muito além disso
Esse processo reune uma série de estruturas do nosso corpo, dentro e fora do sistema nervoso: desde os nossos sensores como os olhos, os ouvidos até a articulação da comunicação pelo sistema motor (boca, mãos), com auxílio de estruturas respiratórias entre tantas outras!
Read 38 tweets
17 Mar
Sobre o artigo da AstraZeneca:
- O dado é sobre a B.1.351 e é um dado com n pequeno, algumas questões estatísticas importantes, mas é um dado importante que aponta a necessidade de mais estudo
- B.1.351 não é a P.1! Para a P.1, precisamos de estudos específicos - e logo! (1/n)
- Em outras vacinas (especialmente dados de ação neutralizante) vimos que a P.1 tem um impacto menor do que a B.1.351 sobre esses dados analisados
- O estudo não viu sobre casos graves, então não sabemos o impacto da B.1.351 sobre a vacina quanto a evitar agravamentos (2/n)
- Dos 87 antígenos específicos da Spike identificados, 75 permaneceram não afetados pelas mutações da B.1.351 e foi observada uma boa expansão de células T CD4+ e CD8+. A resposta celular pode estar relacionada com a prevenção de agravamentos = + estudos! (3/n)
Read 6 tweets
16 Mar
Onde foi parar ochoque ao ver mil óbitos diários na Itália, no início de 2020? Se pegássemos a notícia de hoje e mostrássemos para a população em Fev/20 e disséssemos que isso seria BR em Mar/21, ninguém acreditaria que chegaríamos nisso. Não aceitaríamos nunca isso.
Se chegássimos lá em Fev/20 e disséssemos que tem gente fazendo carreata para reabertura de tudo, gestores contra o uso de máscara e lockdown numa situação de quase 3 mil óbitos só nas últimas 24h, aquela população estaria cobrando gestores por atitudes coerentes.
Se disséssemos para essa população que não foi por falta de aviso de cientistas, profissionais da saúde, eles olhariam pra nós e perguntariam "como vocês ignoraram isso? O que deu em vocês? Pra que desafiar o vírus?"

Estamos fazendo isso. E tem gente que não entendeu isso.
Read 7 tweets
16 Mar
Analistas ainda começam a se preocupar com a chegada do feriadão de Páscoa, na primeira semana de abril. Se o sistema de saúde do RS não se recuperar até lá e houver grande mobilidade da pop., com viagens e encontros, a situação pode piorar ainda mais.

gauchazh.clicrbs.com.br/saude/noticia/…
Segundo @sucamey graças às medidas restritivas, evitamos cerca de 2 mil internações. "Mesmo se considerarmos que algumas pessoas não tenham sido internadas, não temos 2 mil em casa pela falta de leito. Essa é uma certeza: as medidas tomadas conseguiram evitar um caos maior "
Os impactos mais significativos só devem começar a ser sentidos no *início de abril*.

Isso se as pessoas mantiverem o distanciamento.

O efeito de desafogar UTI levaria ainda mais 20 a 30 dias para ser enxergado.
Read 4 tweets
16 Mar
A alta transmissão do SARS-CoV-2 desperta uma preocupação urgente quanto às hospitalizações, novos casos e óbitos, mas também quanto ao surgimento de VARIANTES de nossa preocupação. Hoje vamos falar de algumas descritas lá nos Estados Unidos

Esse é o fio!
Na Califórnia, no fim de Dezembro de 2020, pesquisadores começaram a investigar a presença de variantes de atenção que poderíam ter uma maior transmissão, como a B.1.1.7, que tinha sido identificada no Reino Unido (UK) em Setembro de 2020.
Além de encontrar a presença da B.1.1.7 em algumas amostras, os pesquisadores descobriram outro achado: uma variante "para chamar de sua", até então não descrita em amostras de residentes na Califórnia. A variante foi chamada de CAL.20C
Read 28 tweets
15 Mar
@WHO afirma que não há indícios de que o imunizante esteja causando os raros casos de coagulação sanguínea detectados. A suspensão corrobora que o sistema de vigilância funciona e que controles eficazes estão em vigor - 🧶

valor.globo.com/mundo/noticia/…
Importante destacar que suspensões, pausas e outras ações quando temos a notificação de eventos após a imunização são parte da rotina do monitoramento de imunizantes. Quando a suspensão ocorre, não significa que a relação entre evento A e vacina A está estabelecida.
E não é porque duas coisas acontecem próximas que elas necessariamente tem uma relação de causa e consequência entre si. Explico um pouco mais nesse fio:
Read 15 tweets

Did Thread Reader help you today?

Support us! We are indie developers!


This site is made by just two indie developers on a laptop doing marketing, support and development! Read more about the story.

Become a Premium Member ($3/month or $30/year) and get exclusive features!

Become Premium

Too expensive? Make a small donation by buying us coffee ($5) or help with server cost ($10)

Donate via Paypal Become our Patreon

Thank you for your support!

Follow Us on Twitter!