Barbosa e o Brasil

Gosto de criar narrativas paralelas, em que a história ocorreu de outra forma. Nelas, o Brasil ganhou a Copa de 50. Seus jogadores são lembrados como deveriam ser: no panteão máximo.

Hoje é o centenário de um deles, o eterno Moacir Barbosa! Segue o fio: 👇🏾
Desde ontem, matérias muito lindas estão sendo publicadas, falando de Barbosa muito além de 50. Afinal, ele não é um maiores goleiros da história do futebol à toa. 👇🏾

uol.com.br/esporte/report…
Nas próprias palavras dele:

"Fui tetracampeão com a seleção carioca em 1945, 1946, 1947 e 1948. Fui campeão sul-americano em 1948, invicto. Também fui campeão carioca invicto em 1945, 1947 e 1949. Depois, vencemos 1950, 1952, 1956 e 1958." 👇🏾

interativos.globoesporte.globo.com/futebol/times/…
Barbosa é daquelas figuras solares. Sua trajetória ilumina não só a história do futebol, mas do Brasil. Por isso, o que significa Barbosa nesse enredo nacional?

Sobre 50, muito se comentou da culpa de Barbosa. Hoje, fala-se não de um culpado, mas do time, do coletivo. 👇🏾
Mas falar do time e dos jogadores continua silenciando dois aspectos importantes que rondam a derrota: a cartolagem e o racismo.

Primeiro: se há um culpado pelo Maracanazo, é a politicagem que rondava (e ainda ronda) a seleção brasileira. 👇🏾
Contando pela primeira vez com força máxima em uma Copa, com a base do Expresso da Vitória e o maior jogador brasileiro pré-Pelé, Zizinho, a seleção de 50 foi abrindo caminho no Mundial e após uma fase final avassaladora, chegava como grande favorita contra o Uruguai. 👇🏾
O 6x1 contra o excelente time da Espanha parecia decretar o título. Mas faltava ainda um jogo. Os jogadores sabiam. Mídia, cartolas e políticos pareciam que não. O título já era dado como certo. "Tudo pronto para a vitória", era a manchete do popular Jornal dos Sports. 👇🏾
Mas o pior estava por vir. Na véspera da final, os jogadores foram convocados ao salão nobre de São Januário. Lá, uma multidão de políticos os esperavam para discursar e usar os jogadores como palco. Era ano de eleições e a futura campeã do mundo lhes dava capital político. 👇🏾
Mais de duas horas de falação que os jogadores tiveram que ouvir de pé. O cansaço e os nervos tomaram de conta. Se o foco já estava difícil de se manter com toda a euforia criada, naquele dia ele ficou em frangalhos. 👇🏾
Mendes de Morais, prefeito do Rio, disparou: "vocês jogadores têm o DEVER de conquistar o título em RETRIBUIÇÃO à construção do Maracanã".

Ademir anos depois comentaria: "Ficamos cansados e, o que é pior, acreditamos piamente que ninguém poderia nos derrotar." 👇🏾
O que retirava energia dos jogadores brasileiros, dava aos uruguaios. Varela distribuindo exemplares dos jornais brasileiros na concentração da Celeste e o ocorrido no 16 de julho de 1950 são história.

Logo após a derrota, as narrativas da culpa começaram a ser montadas. 👇🏾
Mídia, cartolagem e políticos logo buscaram se eximir e a achar os culpados mais fáceis em um país como Brasil. Os negros, é claro. Para o patíbulo moral quem tem de ser sacrificado. Barbosa foi o símbolo, mas os defensores Bigode e Juvenal também pagaram o seu preço.
Barbosa, Bigode e Juvenal, enquadrados na desconfiança e ódio aos negros que voltavam a recair pesadamente em um momento particular da nossa história.

Entre os anos 40 e 50, com a abertura pós-Ditadura Vargas, a população negra voltou a se reorganizar no Brasil. 👇🏾
Criação do Teatro Experimental do Negro (1944), Convenção e Congresso Nacional do Negro Brasileiro (1945) e (1950), a criminalização da discriminação racial (tornada a Lei Afonso Arinos, de 1951) e a emergência de figuras como Abdias Nascimento, Guerreiro Ramos e Ruth de Souza.👇🏾
O orgulho negro não se via só nesses eventos. Como narra Nei Lopes, no romance Rio Negro 50, a presença política afrobrasileira esparramava-se pelas cidades, cafés, associações de bairros e espaços populares de cultura. Sentia-se no cotidiano, nas ruas, nos hábitos. 👇🏾
Tratava-se de uma reivindicação radical de um outro lugar do negro na nação - para além das amarras do racismo e da abolição de pouco alcance.

É diante dessas questões que as trajetórias de Barbosa, de outros jogadores negros e da Copa de 50 devem ser lidas. 👇🏾
O Maracanazo é encruzilhada histórica, evento que ilumina disputas, rumos e descaminhos. Ali, travavam-se não só o lugar dos negros no futebol, mas também no Brasil. Por um fio, esses jogadores quase reverteram a chaga da desconfiança e passaram a ídolos históricos. 👇🏾
Mas a derrota veio. Tragédia. Com ela, voltaram os editoriais e comentários sobre a incapacidade inata dos jogadores negros para o controle emocional. A eles, sobrava a emoção e faltava a razão em momentos críticos. Ademais, eram "preguiçosos" e "covardes" quando pressionados. 👇🏾
Em 54, com a pancadaria na derrota para a Hungria, na Batalha de Berna a tese era ratificada: a impureza de sangue na seleção brasileira sempre nos levará ao fracasso. A síndrome de vira-lata, como o próprio nome já deveria nos evidenciar, tinha teores raciais.
Para 58, um relatório foi produzido com o seguinte núcleo: antes do jogador, vem o homem. Ou seja, importa menos a técnica que qualidades morais (leia-se, raciais) do atleta. Isso explica uma seleção quase branca, a exceção de Didi, nos primeiros dois jogos. 👇🏾
Pelé, Garrincha e D. Santos entrariam no time nos jogos seguintes. De novo, o resto é história.

Se o futebol, desde o início do século, era lugar de desconfiança ao negro e do arianismo, ali passava a ser definitivamente espaço de celebração da mestiçagem e democracia racial.👇🏾
Aí a gente volta para o começo dessa história.

O futebol caminhou para outros rumos, a partir dele a imagem do Brasil como paraíso racial se fez, ajudando a silenciar o debate sobre racismo e, especialmente, o lugar dos negros no Brasil. 👇🏾
Falava-se da pena eterna que Barbosa pagava por 50. Mas pouco se falava de como a eternidade dessa pena está atrelada ao racismo - do passado e do presente. Por isso, relembrar o seu centenário é ser capaz de perceber a história da sua vida como parte da história nacional.
As narrativas da culpa e do sacrifício, que pairaram sobre Barbosa, Bigode, Juvenal e que atormentam até hoje atletas negros, fazem parte das circunscrições raciais da cidadania no Brasil.

Dizem também respeito às lutas e às utopias negras dos anos 50, abafadas pelo racismo.👇🏾
Recontar essa história é um reencontro com o passado. Especialmente sobre como ele ainda ecoa em nós. Sobre como ele pode nos ensinar sobre quem somos e queremos ser.

Que Barbosa e tantos outros que reinventaram o Brasil a partir do futebol continuem nos inspirando. 💪🏾
Sobre a Copa de 50 e as relações raciais, as informações foram tiradas do livro "Campões da Raça", de Fábio Mendes, que já citei por aqui. ❤️
E uma observação final.

Talvez nada expresse melhor esse quadro que a narrativa de Nei Lopes no início de Rio Negro 50. Após o Maracanazo, negros no Rio de Janeiro temiam ser linchados por serem confundidos com Barbosa. A pena é eterna e também coletiva.
Inspirado pelo irmão @davidgomesrio, fechando o fio com a belíssima homenagem do @VascodaGama.

Que o passado nos lembre das utopias de um Brasil à altura do seu potencial. 💪🏾💢

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25 Mar
Comicidade à parte, o vídeo dos calouros da FGV só mostra como esse país é senhorial. O mais interessante são figuras públicas parando o seu dia para participar da gincana e que são quase inacessíveis para tratar de assuntos sérios.
Há algo que sempre falo: o abismo social e o deslocamento da realidade de certos grupos no Brasil contemporâneo é pior que o da França pré-1789.
Isso me lembra quando virei calouro do direito da UnB. Os contatos e as redes que as pessoas tinham antes da Faculdade. A proximidade com figurões e os tribunais. Tudo isso era potencializado ainda mais na graduação. Um familismo e coleguismo louco.
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12 Mar
Gente, o ensino superior público esqueceu o que é greve? Nunca houve uma ofensiva tão grande contra o setor e a resposta é fingirmos que não está acontecendo nada? Continuar com prazos, bancas e corrida lattes no meio do fim do mundo? Sério?
Parece que por falarem tanto que o ensino público é isso e aquilo, adotou-se a tática de ficar na moita para não chamar a atenção, evitar o menos pior. Bom, não está adiantando. Quando acordarmos, talvez nem sistema público exista mais para se lutar.
Gente, eu sei que muitos de nós esquecemos. Mas greve não é "parar": greve é espaço de comunicação, de orientação política e de intervenção. Enquanto muitos aqui estão com medo, outros setores já começaram a se articular. Deveria ser papel da universidade intervir nesse processo.
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11 Mar
Aproveitando os debates sobre Mbembe por aqui, conto uma das histórias mais maneiras que já vivi na academia.

Lá em 2015, fui chamado para estar na banca de tcc de um brilhante amigo de graduação, Pedro Argolo. O tema é esse da foto: 👇🏾
Como cês podem ver no resumo, o trabalho é extremamente instigante, criativo e de alto nível. Em especial, o debate sobre o conceito de Nomos da Terra, retirado de um texto não muito lido de Carl Schmitt, capaz de inscrever a cartografia colonial na história do direito moderno.👇🏾
Em síntese, Argolo argumenta, a partir de Schmitt, que o direito moderno (e a legitimação do Estado) dependem das práticas concretas do colonialismo, especialmente a apropriação da terra alheia. O "direito europeu" surge da negação do direito/da normatividade do Outro colonial.👇🏾
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10 Mar
Tem uma parada. A vida pública foi tomada por tanta gente medíocre nos últimos anos (e não só na política, basta ligar a televisão ou ler um jornal), que escutar Lula é um bálsamo. O Brasil sempre foi um país de grandes figuras. Que essa era dos medíocres comece a chegar ao fim.
Independentemente do espectro político. Gente com visão, com conteúdo, que sabe falar com propriedade de diversos temas. O Brasil é um país complicado, mas também não somos pouca merda. A tormenta naturalizou muita coisa ruim, inclusive a completa baixo autoestima. Vai passar.
Houve uma época na pandemia que me refugiei nos antigos Roda Viva. Luiz Carlos Prestes, Florestan Fernandes, Maria Conceição Tavares, Jorge Ben, Dercy Gonçalves, Darcy Ribeiro. Com tanta tristeza, ver aquele tipo de vídeo era a sensação de lidar com um Brasil que havia morrido.
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8 Mar
Como se constrói uma fake news, desinformação e alarmismo desconectado da realidade: no dia em que o judiciário decide finalmente respeitar um pouco da Constituição, preferem assimilar Bolsonaro a Lula como extremos complementares.

Grupos de zap? Nah, toda nossa grande mídia.
Antes de vir com esse papo de que Lula é igual a Bolsonaro (que, com todo respeito, é um atestado de indigência intelectual), a mídia deveria estar informando os porquês jurídicos e constitucionais da decisão. Esse deveria ser o trabalho de uma mídia séria no dia de hoje.
Trabalho de construção de narrativa: explicar a Lava-Jato e seus vícios; como um juiz Zé Ninguém de Curitiba se sentiu no direito de tomar processos para si, como ele violou leis, incorreu em crime (inclusive com apoio da mídia) e contou com suporte de partes do MP e da PF (...);
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1 Feb
Moro e Deltan são o supra-sumo do que faculdades de direito criam diariamente: sociopatas com senso de superioridade, egolatria e mediocridade intelectual. Criminosos em potencial que escondem seus ilícitos na verborragia jurídica e no salvacionismo delirante.
Já circulei muito por conselhos e órgãos universitários e sempre, sempre eram os juristas os primeiros a encontrarem alguma "brecha" normativa, a operarem na exceção, a suspenderem o direito no interesse de alguma parte.
É de se estranhar que qualquer outro curso esteja mais disposto a respeitar a lei do que o direito.

E isso não é exceção, faz parte da estrutura da nossa formação como juristas, que está relacionada a uma função social na organização do poder e das classes no Brasil.
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