Quem já foi meu aluno sabe, mas o fato de acreditarmos que os faraós do Egito estão diretamente ligados ao Estado-nação egípcio do século XX-XXI é um ótimo exemplo de orientalismo.
Isso porque aprendemos que o Egito Antigo é uma espécie de berço da chamada "civilização ocidental". Mas onde o Egito "estagnou", o mundo greco-romano o superou.
Tem uma pá de erros aí. Mas o que mais eu gosto de salientar é que Egito é uma designação territorial e historicamente datada. As mudanças culturais nesse território, que nada mais é do que a passagem terrestre Ásia-África, são imensas ao longo dos milênios.
Acreditar que há algo que une essa história de milênios para além da ocupação territorial (que também foi modificada ao longo desses milhares de anos) é uma ilusão.
E uma ilusão bastante ocidental.
Foi nela que se baseou a egiptologia do século XIX, um ramo do orientalismo europeu, fortalecido em centros de pesquisa ingleses e franceses.
Mas se ilude quem acha que isso ficou no passado.
Se você abrir um livro didático de História hoje, qualquer um, vai ver que a representação do Egito se resume ao Egito Antigo, talvez algo da era Ptolomaica.
Califados da era islâmica? O Império Turco-Otomano? Nada. Um vazio imenso de milênios percorre esses livros.
Percorre os livros porque percorre os currículos também. Adotamos ainda um modelo francês de "História Universal" (chamado hoje de "História Geral") no qual a história do mundo serve para explicar como chegamos aqui.
Qual o problema disso? Bem, para além da filosofia da história que ainda está exposta, é que a gente aprende na história o Egito como apêndice de uma história da humanidade. Uma humanidade europeia, claro. Assim, conforme a Europa "evolui" - e acompanhamos...
...essas mudanças capítulo por capítulo no livro didático -, o Egito segue intocável, "fora da história", avesso às transformações. E por isso acreditamos que a época dos faraós guarda algo de tradição/ligação com o Egito atual.
Que o governo egípcio faça coro a esse discurso não deveria ser surpresa. Sequer é novidade.
O lugar do Egito na história é o desse passado, mas os demais são colocados em segundo plano na "grande história universal". Bóra valorizar o que o gringo quer ver, né?
Esses usos instrumentais do passado eram restritos a Europa, mas o que seria do colonizador se não houvesse as elites locais para darem vazão ao projeto europeu? Pode ser vantajoso a essa elite ser reconhecida pelo "Ocidente" como continuidade desse passado.
Sisi faraó maybe?
Enfim, o Egito, como outras partes do mundo, só entra nos livros de história quando seus elementos corroboram a narrativa da existência e da supremacia do "Ocidente".
Agora, por que no Brasil, que nem ocidente é, a gente mantém essa abordagem, é um mistério a se resolver. 🤔
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Acho impressionante o medo que as pessoas têm de que surja uma agenda política que simplesmente queira responsabilizar a direita por ter se abraçado no verme.
Esse pânico geralmente tá disfarçado na ideia de que não pode falar nada porque senão eles vão votar de novo no Bozo.
Deve ser medo de que no próximo debate que alguém vier com "e a Venezuela?" a gente pode mandar um: "e vossa excelência que foi ministro do boçal? Que tirou foto fazendo sinal de arminha feito um abobado?"
Mas a real é que esse medo de que as direitas sejam responsabilizadas tá ali, nos anos 80, quando nos acusavam de "revanchismo" quando se queria publicizar algozes e cúmplices da ditadura.
Pessoal ficou mordido porque eu disse que Ciro pode ser o melhor candidato da direita, mas isso é menos sobre o Ferreira Gomes e mais sobre a direita não-bolsonarista, que corre o risco de se tornar insignificante na próxima eleição.
Tô pensando aqui que essa direita não vai apoiar o PT ou demais partidos de esquerda porque, afinal, são partidos de esquerda.
Mas podem apoiar o PDT. Se o Ciro for maior que o partido e flexibilizar o programa desenvolvimentista, por que não?
Seria a chance de sobrevivência e relevância para gente que, se não fosse o bolsonarismo, seria basicamente refugo da política partidária - tipo o Dória. E que agora rejeita a tigela de bosta em que se refestelou...
Por essa lógica, por exemplo, os massacres do Khmer Vermelho, no Camboja, não poderiam ser chamados de genocídio, já que não foram racialmente motivados.
Os sobreviventes, contudo, discordam e há uma longa disputa, em fóruns internacionais, para que seja reconhecido como tal.
2) Esse inclusive é meu segundo ponto. Não sou especialista no tema, mas não creio que há algo como um "termo técnico" para genocídio que seja fechado. Ele é sempre alvo de disputa jurídica e geopolítica. Consigo lembrar agora da questão dos Herero e dos Nama, na atual Namíbia.
O @IrlanSimoes falou pra eu tentar escrever um pouquinho sobre Suez e eu disse que não tinha muita leitura.
Mas um fiozinho dá para arriscar, né?
Então vamos lá, vou apresentar um dos maiores símbolos da história do imperialismo: o canal de Suez.
Vamos "começar pelo começo": o Egito, no século XIX, era a porta de entrada do Império britânico na Ásia. Sua importância foi tanta que, nas guerras napoleônicas, "Napo" entendeu que conquistar o Egito iria alijar a Inglaterra da Índia.
Por conta disso, a França invadiu o Egito, que na época era uma província do Império Otomano.
A retaliação conjunta de turcos e britânicos acabou expulsando os franceses, mas deixou a Inglaterra ciosa de que o Egito não poderia jamais cair nas mãos dos seus inimigos.
Aliás, a história do canal de Suez é maravilhosa, é puro suco de imperialismo do século XIX. Franceses resolvem montar o canal, conseguem apoio de um governo fantoche do pashá egípcio, o seu sucessor vê que o troço é um elefante branco e vende para os ingleses...
...aí o canal passa a dar lucro imediato.
Como? Simples, os britânicos boicotaram o canal, mudando o sistema internacional de tonelagem de navios, diminuindo a arrecadação tributária da empresa.
Nem vou entrar depois no quesito independência egípcia, governo Nasser e o papel de ingleses e franceses, junto com Israel, para impedir a nacionalização do canal - num raro caso da Guerra Fria em que EUA e URSS se uniram para defender a soberania egípcia.