O @IrlanSimoes falou pra eu tentar escrever um pouquinho sobre Suez e eu disse que não tinha muita leitura.
Mas um fiozinho dá para arriscar, né?
Então vamos lá, vou apresentar um dos maiores símbolos da história do imperialismo: o canal de Suez.
Vamos "começar pelo começo": o Egito, no século XIX, era a porta de entrada do Império britânico na Ásia. Sua importância foi tanta que, nas guerras napoleônicas, "Napo" entendeu que conquistar o Egito iria alijar a Inglaterra da Índia.
Por conta disso, a França invadiu o Egito, que na época era uma província do Império Otomano.
A retaliação conjunta de turcos e britânicos acabou expulsando os franceses, mas deixou a Inglaterra ciosa de que o Egito não poderia jamais cair nas mãos dos seus inimigos.
(isso teve impacto na Segunda Guerra Mundial também, mas isso é assunto para outro fio)
Bom, com as forças de Napo expulsas, teve início um novo período da história do Egito. A presença britânica aumentou consideravelmente e, enquanto isso, a região mergulhou em guerra civil.
Quem saiu vitorioso nessa foi um general chamado Muhammad Ali, que inaugurou uma dinastia que durou de 1805 até 1953.
Mas por mais que alguns desses monarcas sejam vistos por vezes como "modernizadores", no fundo eles abriram as portas para a presença europeia no Egito.
Tinha algumas formas de lucrar com isso. A principal delas era o algodão.
O Egito, bem como a Índia, o Brasil, os Estados Unidos e a África Ocidental se tornaram pólos de algodão, alimentando as fábricas britânicas do Lancashire.
Aquele velho papo, né? Se o casaco de Marx fosse de algodão, ele começaria o Capital falando de "globalização" e escravidão. Mas vamos retomar a meada.
Quanto mais o Egito empenhou seu campesinato na dependência do algodão (para garantir uma balança comercial favorável),...
...mais a industrialização da região atrasou. Capitalista com lucro fácil em algodão não ia investir em indústria que não desse o mesmo lucro fácil, né?
Ainda assim, com os ganhos comerciais e a "proteção britânica", dava para dizer que o Egito do século XIX praticamente...
...estava independente do Império Otomano (e cada vez mais dependente do Império Britânico).
Mas como garantir a modernização efetiva do país? Bem, a aposta veio de um dos netos do velho Muhammad Ali, Muhammad Said.
Said era um francófilo, educação francesa e tudo e entendia que para quebrar a dependência do algodão e dos ingleses, o próximo passo era uma aliança com os franceses e um investimento massivo para estimular indústria e comércio no país.
Ele retomou a ideia de engenheiros franceses lá da época de Napoleão, de criar um canal ligando o Nilo ao Mar Vermelho. Isso aliviaria a pressão britânica e, ao mesmo tempo, estimularia os fazendeiros enriquecidos pelo algodão a investirem seu capital em indústrias locais.
(ou assim ele imaginava)
Para isso, Said tratou diretamente com um diplomata francês e burguês dono de uma invejável fortuna, Ferdinand Lessep. Lessep usou seus contatos e montou uma empresa de capital privado chamado Compagnie Universelle Du Canal Maritime de Suez, em 1858.
Nessa companhia, encarregada da construção e da administração do canal, Said e a família real egípcia detinham 44% do capital. Assim, em 1859 a companhia começou seus trabalhos, com alta expectativa de lucros.
Mas os britânicos não gostaram nada disso. A autonomia egípcia estava indo longe demais e o canal criava dois problemas: ou tributação pra mais os navios da Inglaterra e suas colônias, ou tributaria pra menos navios de empresas de outros países concorrentes (como a França).
Mais do que isso, facilitaria o acesso à navegação na Ásia e tiraria os navios do Cabo da Boa Esperança e deixaria obsoleta a rota terrestre de Istambul - que os britânicos controlavam em parceria com os otomanos.
Para contra-atacar a diplomacia britânica mexeu seus pauzinhos: começaram dizendo que os países europeus deveriam se opor ao uso de trabalho escravo na construção do canal, acusando o Egito de conivência com a escravidão.
Teve trabalho escravo? Não sei dizer, mas várias formas de trabalho coercitivo operaram em forma de corveia para o Estado. A campanha britânica, contudo, foi bem sucedida: afastou investidores e fez Said proibir trabalho involuntário na construção.
Quando a construção ficou pronta, em 1869, foi um navio britânico inspecionar o canal - e ele encalhou (rá!). Os ingleses esculacharam com a obra de engenharia franco-egípcia.
Para piorar, nos primeiros anos, o canal teve sérios prejuízos.
A obra demorou mais para ser construída e o custo foi o dobro do orçamento inicial. E o retorno era baixo demais. Isso tem dois motivos:
1) Os britânicos não estavam usando o canal, optando pela rota pela África do Sul. Nem eles, nem suas colônias.
2) Os navios que utilizavam eram obrigados, pela administração do canal, a pagar tributação em cima da tonelagem da carga. Porém, desde 1854 os portos ingleses usavam um sistema de avaliação da tonelagem dos navios diferente.
A administração do canal queria dar um "jeitinho" de tributar a carga valiosa que ia rumo à Ásia e os ingleses se opuseram a isso.
Quem diria, portanto, que os ingleses iam assumir o canal em 1875?
O plano de modernização egípcio esbarrou numa das maiores crises econômicas do capitalismo, a crise de 1873-1874. Após um boom no preço do algodão durante a Guerra Civil dos EUA (1861-1865), os preços despencaram em 1873. Milhares de camponeses perderam tudo.
Como o algodão ainda era o único produto egípcio que equilibrava a sua balança comercial, o descontrole dos preços forçou a mão da monarquia egípcia que, sem alternativa, vendeu as suas ações (44% da companhia, lembram?) para o governo britânico em 1875.
Quando os britânicos passaram a controlar o canal, junto com os franceses, a política mudou: os navios britânicos foram gradualmente abandonando a rota do Cabo da Boa Esperança, aumentando enormemente a receita de Suez.
Segundo a Wikipédia, o tempo economizado, em 1869, numa viagem de Bombaim até Londres era de 24 dias. Pode parecer insignificante, mas uma coisa não pode ser menosprezada.
Em 1851 a Grã-Bretanha criou o Meridiano de Greenwich, um grande facilitador para os investidores da bolsa de Londres saberem com precisão o fluxo de mercadorias global - e para atormentar as aulas de geografia de geral.
Tudo que abreviasse o tempo do transporte era fundamental para os ingleses.
Mas então por que sabotaram o canal em seus primeiros anos???
Tem várias explicações possíveis, mas a mais lógica: para impedir a modernização egípcia mesmo.
Sabem "chutando a escada"? Impedir que outros países trilhem o seu caminho de desenvolvimento? Pois foi isso...
Essa estratégia fica mais evidente porque em 1882 a Inglaterra invadiu oficialmente o Egito e transformou a região oficialmente em protetorado (até 1956).
A revolta nacionalista egípcia e sudanesa dos Mahdi foi debelada pelos britânicos, mas o custo foi alto: o Egito tornou-se um fantoche de fato.
Assim, a companhia de Suez tornou-se majoritariamente francesa em seu capital, mas o Egito era colônia inglesa.
No frigir dos ovos, é como eu disse: a história de Suez antes da crise de 1956 é a história do imperialismo (britânico principalmente) naquele país que ligava justamente o mundo africano com o mundo asiático. Era a ponta de lança do colonialismo em dois continentes.
Que hoje tenha um navio bloqueando a bagaça toda serve só para gente pensar como o imperialismo é realmente um tigre de papel. 🤭
PS: Esse fio teve como referências autores como John Chalcraft, Eric Hobsbawm e Sven Beckert. Não conheço nenhum livro sobre a história do canal, mas em algumas das obras desses autores a gente tem elementos para pensar essa narrativa. :)
PS2: Se você aguentou esse fio até o fim, parabéns. Ele ficou longo demais até para o tipo de fio que eu costumo fazer...hehe
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Aliás, a história do canal de Suez é maravilhosa, é puro suco de imperialismo do século XIX. Franceses resolvem montar o canal, conseguem apoio de um governo fantoche do pashá egípcio, o seu sucessor vê que o troço é um elefante branco e vende para os ingleses...
...aí o canal passa a dar lucro imediato.
Como? Simples, os britânicos boicotaram o canal, mudando o sistema internacional de tonelagem de navios, diminuindo a arrecadação tributária da empresa.
Nem vou entrar depois no quesito independência egípcia, governo Nasser e o papel de ingleses e franceses, junto com Israel, para impedir a nacionalização do canal - num raro caso da Guerra Fria em que EUA e URSS se uniram para defender a soberania egípcia.
Obs: alimentação é campo do profano e do sagrado, então a ideia aqui é menos discutir gosto e sim ver como a nossa imprensa lidou com casos de aumento de preços com manchetes "positivas", apelando para mudanças em hábitos alimentares.
Isto posto, vamos lá:
1) "Quando é seguro comer pão, queijo e outros alimentos mofados" - Folha de São Paulo.
Crítica à Razão Negra é um dos livros mais difíceis que já li. O grau de erudição e os problemas que ele levanta tão muito além do que consigo alcançar numa leitura sem método.
Ainda assim, li o livro e usei ele para um concurso cujo um dos pontos era Iluminismo. O capítulo 1 é todo focado no "vazio" da intelectualidade ocidental ao lidar com os negros no século XVIII e XIX. Era um bom contraponto a uma história eurocêntrica do iluminismo.
Necropolítica, que achei um livro mais palatável na leitura, reatualiza Foucault e como eu conheço mais o careca, não achei tão difícil. Reatualizar a ideia de governamentalidade para fora do Estado-nação europeu é um argumento poderoso.
O fantástico caso do intelectual que pede rigor conceitual para "neoliberalismo", mas que acha que pode usar o conceito de "populismo" para Chavez, Putin, Bolsonaro, Jango e Trump. 🤷
Dada a desonestidade em alguns retweets, uma explicação: "populismo" e "neoliberalismo" são conceitos com valor heurístico em seus campos de estudo. Ou seja, eles possuem poder explicativo desde que situando e situados por ou um balanço bibliográfico, ou por um estudo empírico.
O problema aí é que para algumas pessoas, o uso de um desses conceitos pode extrapolar os limites do campo e virar moeda de troca simbólica no cotidiano e o outro não.
Interditar neoliberalismo porque queremos rigor conceitual, mas usar populismo como moeda de troca é seletivo.
A simplificação neoliberalismo = menos Estado é grosseira e não resolve nada.
O neoliberalismo de Pinochet não enxugou gastos militares. E precisa ser muito tacanho para achar que o custo de manter a repressão nos cascos não é pensado como investimento econômico.
Se pensar Pinochet, Reagan e Thatcher, ninguém ali enxugou a capacidade repressiva dos seus países. Aliás, me pergunto sobre a correlação entre desregulamentação financeira e o crescimento dos gastos militares.
Para Reagan, com certeza isso aconteceu. Pinochet nem preciso dizer. Thatcher é minha dúvida. Mas não duvido...
Ideólogos neoliberais sequer questionam que enquanto pedem menos Estado, se calam diante dos abusos de militares e policiais.