Com o anúncio do estudo ACTION, tivemos a confirmação que médicos de todo o mundo caíram mais uma vez no canto do mecanicismo. A anticoagulação é a "cloroquina socialmente aceita".

Vamos entender a razão pela qual tantos médicos e leigos caíram nessa pegadinha cognitiva.
1. É plausível, mas nem tanto.
A anticoagulação profilática ou terapêutica é uma das terapias mais difundidas da Medicina. Tão difundida que parece ter fortes evidências do seu uso.

Mas não é bem assim.
1.1 O pontapé inicial da anticoagulação para TEV/TEP veio em 1960 com um estudo não-cego, não-randomizado, sem confirmação diagnóstica, interrompido precocemente.

"Ah, mas há outros trials depois desse..." você diria.
1.2 Quando uma terapia alcança o status de "indiscutível", se torna anti-ético pesquisa-la. A anticoagulação não merecia esse posto.
Resultado é que a meta-análise publicada em 2006 com apenas dois estudos(!) é negativa.
1.3 Não há estudos de boa qualidade que definam a eficácia da terapia versus a ausência da terapia.
1.4 Isso mesmo - a anti-coagulação profilática e terapêutica é:
- Uma terapia com eficácia desconhecida (isso pode doer um pouco em alguns).
- Uma terapia com efeitos colaterais conhecidos e clinicamente significativos.
- "Desconhecida" é diferente de "ineficaz".
1.5 "A percepção de que TEV é uma causa comum de morte deve ser revisada considerando o efeito nulo da sua prevenção na mortalidade".

Perceba que o autor sequer considera a hipótese da terapia não funcionar. Prefere concluir que TEV não mata.
2. Médicos mecanicistas precisam ser mais humildes.
- Achamos que conhecemos a cascata de coagulação. Achamos que dominamos perfeitamente a hemostasia do ser humano.
- E se os mecanismos dos anticoagulantes forem falho porque são bloqueados por outro que nem foi descoberto ainda?
2.1 E se estamos perdendo tempo há 60 anos, ancorados em uma proposta puramente mecanicista (porque não há evidência de qualidade) e por isso não descobrimos ainda algo melhor?
3. Muitos médicos não sabem interpretar exames(!) e por isso acharam aceitável tratar pacientes baseados em um valor laboratorial.

Por meses, a regra era se achar esperto ao indicar anti-coagulação "profilêutica" para d-dímeros elevados.
3.1 O d-dímero tem 90% de sensibilidade e 37.5% de especificidade para o diagnóstico de TEV/TEP. Utilizando um raciocínio bayesiano, observamos que alguém com d-dímero elevado tem uma probabilidade de falso positivo de 76%.
3.2 Isso significa que a cada 100 pacientes que um médico tratou usando essa estratégia antes do ACTION:
- 76 só tiveram o risco aumentado de sangramento
- 24 teoricamente tiveram benefício ("teoricamente" porque nem isso é comprovado).
3.3 Não precisa nem se exigir que um médico entenda de raciocínio bayesiano.

Mesmo não sendo aconselhável o uso da especificidade e sensibilidade por clínicos, o valor de 37,5% de especificidade já deveria acender um alerta para a alta taxa de falsos positivos.

Não alertou.
4. "A COVID é uma doença trombótica". Será?
Há uma série de vieses cognitivos inseridos nessa afirmação que também se tornou socialmente aceita.
4.1 Viés de comissão
- Especialmente no início da pandemia, muitos foram extremamente agressivos com seus pacientes sob o pretexto de "ter que fazer algo" como se a Medicina não causasse dano nenhum.
Isso pode ter levado ao overdiagnosis e overtreatment de várias condições.
4.2 Viés de disponibilidade
- Lendo no zipzop que a COVID é uma doença trombótica, o médico começa a pesquisar a doença em todos.
A pesquisa de TEV/TEP não é rotineira em diversas doenças da Medicina.
Não sendo rotina, não há maneira de comparar a incidência de trombose na COVID com diversas outras doenças.
Se pesquisássemos ativamente TEV/TEP em todas as doenças, encontraríamos 16%?
Eu não sei. Nem você sabe.
4.3. Viés de confirmação
Ao diagnosticar um TEV/TEP em alguém com COVID, o médico só se convence mais e mais do mantra de doença trombótica e da necessidade de anticoagulação.
Na UTI não-COVID, no mesmo dia, talvez alguém tenha morrido por TEP sem diagnóstico porque não é rotina.
5. Inversão do ônus da prova.
A publicação do ACTION não deveria ser razão para parar a prescrição indiscriminada dos anticoagulantes.

Porque ela nem deveria ter começado, visto que não tinha comprovação, apenas "racional" suportando seu uso.
PS: racional fraco, como demonstrei
O ACTION comparou terapia com Rivaroxabana ou Enoxaparina versus anti-coagulação profilática para pacientes com COVID e d-dímero elevado.
Além de não reduzir TEV e mortalidade, aumentou sangramentos com NNH de 16.
Lembra daqueles 100 pacientes que um médico anticoagulou pelo d-dímero porque viu no facebook que isso era adequado antes do ACTION? Atualizando os números:
- 100 não tiveram redução de probabilidade de embolia ou morte.
- 6 tiveram um sangramento.
O conselho é que não tente ser o grande médico mecanicista e paternalista que está de olho nas novidades de zipzop, trazendo tudo em primeira mão aos seus pacientes.

Aguarde os estudos ou até lá você pode estar apenas causando dano e não o desejado benefício.
Se alguma teoria faz sentido em Medicina, apenas pense:
- E se houver algum mecanismo inibitório ou até mesmo prejudicial atuando nessa teoria proposta?
- Qual o jeito de conhecer o real benefício clínico?
E responda a si mesmo: randomizando e cegando pacientes e médicos.
Como muitos colegas têm alertado, a ficção da cloroquina/ivermectina/anti-androgênicos é apenas a ponta do iceberg.

Há muitas cloroquinas nas nossas prescrições que um médico sabe que pode comentar no elevador sem ser automaticamente tido como leigo.

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17 Apr
Seu Ednaldo, 58 anos, funcionário de uma emissora de TV, dá entrada no PS por "síncope".
Foi solicitado um CATE e o paciente recebeu um stent (lesão entre 70 - 90% na DA).
Mas ele não infartou e o stent foi mal indicado. Quais erros e vieses cognitivos foram cometidos aqui?
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Em uma conversa mais detalhada, Ednaldo conta que teve uma sensação que ia desmaiar e ficou fraco. Não perdeu a consciência.
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15 Apr
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13 Apr
Qual RCT testou maracugina em dias de lua cheia, com desfechos duros, que tinha RT-PCR...?

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11 Apr
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Quando um médico prescreve algo (ou intervém em algo), ele oferece probabilidades:
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3. Foi criado para quem quer ser independente na avaliação do ECG. O curso é absolutamente completo e traz todos os tópicos possíveis de se encontrar na vida real.

Deseja nunca mais passar perrengue em ECG de marca-passo ou pediatria, por exemplo? Bem vindo!
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