Milionário e José Rico, a China e a intelectualidade brasileira
Em meados da década de 80, Milionário e José Rico eram uma das principais duplas do sertanejo brasileiro, gênero que estava em vias de se nacionalizar e virar o grande fenômeno musical do país. 👇🏾
Em 77, lançaram o seu maior sucesso, Estrada da Vida, clássico do cancioneiro nacional, embasado na rancheira mexicana. Com o estouro, em 81, a música e a carreira da dupla inspiraram filme homônimo, de Nelson P. dos Santos. Apesar da bela estréia, o sucesso foi relativo.👇🏾
No entanto, naquele momento, final da Ditadura Militar, o Brasil estava reatando relações com o bloco comunista. Aproveitando isso, a película foi exportada para a URSS, onde participou do Festival Internacional de Filmes de Moscou, e para a China. Aí a coisa fica boa. 👇🏾
Em 83, o filme chegou na China e foi um absoluto sucesso, junto com as músicas da dupla (músicas que eram atacadas pela crítica musical no Brasil). Pois bem, diante do fenômeno, o Partido Comunista Chinês quis levar o duo para uma turnê e propôs um intercâmbio com o Itamaraty. 👇🏾
A dupla iria para a China e a Orquestra Sinfônica de Pequim viria ao Brasil em 86. O governo brasileiro não entendeu foi nada. Os chineses sabiam quem era Milionário e José Rico, os burocratas e intelectuais brasileiros não. O empresário da dupla, José Raimundo, resolveu agir. 👇🏾
Foi conversar com o então Ministro da Cultura, Celso Furtado, fina flor da elite intelectual brasileira. Como narra Gustavo Alonso, Furtado parecia que vivia em outro país, pois nunca tinha ouvido falar de Milionário e José Rico, bem como não sabia nada sobre sertanejo. 👇🏾
Vejam o quiprocó nas palavras de Gustavo Alonso: 👇🏾
Diante da ignorância e da recusa de Celso Furtado, a Continental arcou com os custos da viagem e o resto é história. Milionário e José Rico foram cantar o Brasil que os chineses conheciam e eram apaixonados, mas que nossa elite desconhecia e continua ignorando arrogantemente. 👇🏾
Por que gosto dessa história? Bom, ela demonstra o descolamento de certa intelectualidade nacional do próprio Brasil. Mas sobretudo: pensar história e estética do sertanejo brasileiro desmonta a grande maioria da produção acadêmica feita nas "principais" universidades do país. 👇🏾
Como o próprio Gustavo diz, apesar de ser o gênero mais popular do país, o sertanejo continua sendo um "mistério" para nossos intelectuais, que, muitas vezes, pensam o Brasil como mero desdobramento de uma certa visão do Sudeste e, quando muito, de algumas capitais nordestinas.👇🏾
Lembrei desse caso terminando texto sobre sertanejo e raça que vem aí. Mas para quem tiver interesse, recomendo os trabalhos do Gustavo Alonso. A história da thread, inclusive, foi tirada do artigo "O Rodeio e a Roça: o mistério da música sertaneja". 👇🏾
Clóvis Moura, Florestan Fernandes e os sentidos do 13 de Maio
Nesta mesma data, em 1888, a escravidão era abolida no Brasil. Perguntas rondam o evento. Qual a participação dos negros? Houve um abandono após a Lei Áurea?
Segue fio para pensar a partir de Clóvis e Florestan:👇🏾
A partir dos anos 50, ambos autores são fundamentais para romper com o modelo culturalista de interpretação do escravismo. Com isso, não só confrontam a visão da singularidade brasileira, "escravidão branda", como articulam uma perspectiva estrutural do fenômeno. 👇🏾
Em suas análises, o imbricamento entre raça e classe é central e os faz convergir em três aspectos.
1. O desenrolar do escravismo no Brasil está conectado ao desenvolvimento do capitalismo mundial. Acumulação no Norte global e escravidão negra são partes do mesmo sistema.👇🏾
Acaba de ser publicado o artigo "Constitucionalismo Negro: elementos de teoria e história constitucional a partir da Revolução Haitiana", na Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito, da Unisinos. 👇🏾
O texto é sistematização de temas que trago na dissertação. Dois são os principais objetivos. Primeiro, servir de pequeno guia introdutório da Rev. Haitiana no constitucionalismo, facilitando a abordagem em sala de aula por professores ainda não familiarizados com o assunto. 👇🏾
O segundo é esboçar uma agenda de pesquisa no direito, em que não só o Haiti seja elemento chave de compreensão do direito moderno, mas também o racismo, a escravidão e o colonialismo. Enfrentar a questão que encerra o artigo: quão negro e africano é o iluminismo?👇🏾
Um dos grandes momentos do lulismo como FENÔMENO foi o último programa da campanha de 2002. Vejam. Primeiramente, trazer Zezé di Camargo e Luciano, a maior dupla dos anos 90, para cantar Vida de Viajante, de Luiz Gonzaga, é simplesmente soberbo e genial. Baita CONTEXTO. 👇🏾
Mas o ponto máximo é o encerramento. Qualquer um que nasceu até o final dos anos 80 com certeza vai se lembrar de cada detalhe dessas cenas compiladas. Um mix do melhor produto de campanhas eleitorais. Para não falar do discurso: "Viva o Brasil, viva Luiz Inácio Lula da Silva."👇🏾
Se havia alguma dúvida até essa noite, o brasileiro encarnou e decidiu sentar o 13 na urna naquele domingo 27 de outubro haha.
O programa para quem quiser ver (é bom lembrar, início dos 2000, televisão na boca do povo, o impacto absurdo desse trem):
Tenho uma hipótese. Com a redemocratização, a teoria crítica (especialmente sua face normativa) feita nas universidades brasileiras (naquele momento, composta por classes média e alta) sofreu uma forte inflexão, embarcando em novos modismos, entre eles, Habermas. 👇🏾
Sejam aportes revolucionários, seja uma crítica radical ao capital foram taxados como anacrônicos e demodê. Lembro na graduação ter escutado "Habermas ajuda a pensar a transformação social em um mundo sem proletariado." Esse modismo foi insuflado por bolsas de estudo na gringa.👇🏾
Um professor com passagem pela Alemanha era/é tratado como um Deus. Nos últimos anos, essa forma de pensar se mostra cada vez mais caduca, seja pela própria crise do capitalismo, seja pela emergência de intelectuais não-brancos e não-aburguesados em certos espaços, 👇🏾
Entendo o liberalismo como uma tradição múltipla. No XIX, por exemplo, foi utilizado para defender a escravidão, mas também houve uma vertente radical abolicionista.
No Brasil, por outro lado, frequentemente o que se chama de liberal é um misto de escravismo e fascismo de terno.
Moro, Folha, Estadão, complexo Globo, nossa direita em geral. Não é que os liberais aqui convivam muito bem com fascistas: o que se chama de liberal, geralmente, é fascismo puro, pois ignoram qualquer lastro normativo oriundo do princípio democrático e dos direitos humanos.
Tem uma palavrinha chata da teoria do direito, mas que explica isso: contrafactualidade. O liberalismo pressupõe um plano de validade (estado de direito, legalidade, direitos humanos, separação de poderes e soberania popular) que estabelece uma régua moral para analisar os fatos.
Legalização de todas as drogas. Extinção da pena dos condenados pelo crime de tráfico e robusto acordo de paz com facções. Criação do parque científico e produtivo da maconha, com foco na absorção de mão de obra oriunda das comunidades até então afetadas pela guerra às drogas.
Apenas enfatizando: acordo de paz significa a primeira medida para que o Estado reconheça antigos "inimigos" como sujeitos de direitos. Dele, somado a medidas de justiça de transição, podemos falar em reparações, indenizações, políticas de memória e reconstrução nacional.
Temos aqui na América Latina e no mundo todo exemplos de políticas neste sentido que poderíamos nos inspirar e, sobretudo, aprender com os erros para lidar com a complexidade e especificidade do caso brasileiro.