Nos últimos dias tenho conversado com o pessoal que se afirma como marxista libertário sobre a China. Eles insistem que a China é capitalista e acho que, para eles, considero que a China é socialista. Ou que não é capitalista. Mas o buraco é mais embaixo e por isso fiz esse fio.
Eu compreendo as posições teóricas que chamam a China de capitalismo de Estado, ou Estado operário degenerado, ou qualquer outra nomenclatura que tenha nascido no movimento trotskista. Sou um trotskista desgarrado, então conheço um pouco desse paranauê.
Mas tenho alguns incômodos com essa discussão.

O primeiro deles é que modo de produção não se reduz a um país. Para quem é anti-stalinista, não creio que há divergência, mas é bom ressaltar. Não existe socialismo num só país. Não existe capitalismo num só país.
Os regimes socialistas do século XX criaram obstáculos ao capital, mas na hora de transformar um modo de produção de forma radical, essa mudança não veio. Ou porque a burocracia se descolou da classe trabalhadora, ou simplesmente porque a exploração continuou existindo.
Alguns obstáculos são louváveis e fundamentais - moraria fácil em Cuba, mesmo com todas as limitações. Outros são frágeis e, por sua vez, quanto mais um país se abre para o capital, mais difícil é controlar essas forças no conjunto da sociedade civil.
Mas no fundo, caiu o muro, o capitalismo é hegemônico globalmente e mesmo regimes que se dizem socialistas se veem obrigados a abrir espaço para o capital - espaço limitado, mas suficiente para essa relação se encrustar no tecido social (mas eu retomo depois).
Tem um segundo complicador aí que é o fato de que os chineses, em sua grande maioria, tão disputando o que é o socialismo chinês faz algumas décadas. Desde Sun Yat-Sen, no mínimo, mas a verdade é que o Partido tem uma interpretação - que é a hegemônica - mas...
... greves, movimentos sociais e sindicatos questionam ela. Até um tempo atrás, os questionamentos eram dentro do próprio partido, mas Mao e depois Deng eliminaram essa possibilidade. Pelo menos o sentido público dela.
Há uma tensão mesmo entre os chineses sobre o caráter do regime. A criação das Zonas Econômicas Especiais, em 1978 em diante gerou contradições que a própria sociedade chinesa está vendo (p. ex., como assim, uma bolsa de valores num país que se diz socialista?).
Dessas contradições, a percepção dos sujeitos se agudiza conforme os conflitos entre capital e trabalho passam a se avolumar. A burocracia chinesa procura mediar essa relação e o socialismo "oficial" surge como sustentação teórica. Mas não é o mesmo socialismo...
...que trabalhadores e trabalhadoras reivindicam quando estão em greve. Uma das coisas mais fascinantes das lutas recentes na China é o uso da figura de Mao Zedong para dizer que o regime não é maoísta o suficiente.
Ao mesmo tempo, se tem contradição, não dá para engolir o papo de China socialista (ou comunista) assim, sem mais nem menos. O debate, ao meu ver, é menos sobre o caráter do regime e mais sobre a viabilidade de um modo de produção existir dentro dos limites de um regime político.
O que eu quero dizer com isso? Bem, se socialismo for um modo de produção e se ele propõe a superação do capitalismo, não faz sentido deslocar ele para apenas um país enquanto o capital possui escala global e se movimenta mais livremente que as pessoas.
Mesmo que um país se afirme como socialista, mas se ele consome, por exemplo, cobalto vindo do Congo, isso significa que relações predatórias do capitalismo extrativista e do antigo imperialismo alimentam a indústria no país socialista.
Na cadeia global de produção de mercadorias, mesmo que haja uma ponta com relações socialistas de trabalho (i. e. controle dos meios de produção), isso não define modo de produção algum. E aí reside um perigo nas caracterizações da China atual.
Esse é um debate antigo no marxismo, mas via de regra, é possível dizer que mesmo onde o capital surgiu, isso não quer dizer que o capitalismo surgiu junto.
É a dinâmica complexa onde o capital adentra em todos os espaços da vida que instituem o capitalismo, não como regime político, mas como forma dominante de produção e organização social.
É complicado porque isso significa que não há um marco específico que diga aqui é capitalismo e lá era feudalismo. Para garantir essa reprodução praticamente infinita das relações capitalistas, é preciso que homens e mulheres desobstruam os antigos obstáculos ao capital e...
... pavimentem o caminho para a sua entrada nas mais diferentes searas da vida.

Mesmo que a gente considere que a China possui relações socialistas, seja entre os homens, ou entre os homens e as coisas (e não tem), ela ainda está envolta em um mundo onde o capital se expande.
Inclusive, David Harvey considera que essa expansão global a partir dos anos 1980 foi inclusive facilitada desde que a China proveu ao mundo capitalista um estoque praticamente ilimitado de mão de obra barata e o maior mercado consumidor do planeta.
Eu admito que muitas dessas reflexões são rocambolescas. Já fui acusado de ficar em cima do muro no debate se a China é socialista ou capitalista. Mas é que para mim, a forma do debate está errada. Vivemos em um mundo capitalista.
Criar obstáculos à reprodução do capital é uma estratégia de luta dos socialistas desde o século XIX. Mas a China hoje não está criando mais obstáculos, está diminuindo eles. Com exceção de alguns aspectos - importantes, claro -, o regime se adequou a ordem global capitalista.
Eppur si muove. O regime chinês ainda reivindica o socialismo. Nenhum outro país no mundo, com algumas notórias exceções, reivindica o socialismo e a história de luta dos trabalhadores. O paradoxo disso é que ao mesmo tempo em que promove a expansão do capital, o regime...
... procura colocar-se como a única forma de representação da luta do trabalho por direitos. Dos paradoxos que isso gera na própria forma de luta de classes na China, o país vê greves estourando em larga escala e a maioria delas reivindicando o socialismo.
Por isso creio que o debate precisa ser justamente sobre as formas que a luta de classes assumem num país como a China, cujo crescimento econômico acelerado não tem precedentes na história recente e cujo poder político afirma-se em símbolos da luta dos trabalhadores.
Esses paradoxos são mais complexos do que assumir que o regime é capitalista ou socialista. "O que importa é que ele cace ratos", já diria Deng. Pois então, vamos aos ratos, vamos mergulhar nas contradições geradas pela entrada do capital nesse país.
No final, é o único jeito da teoria emergir mesmo, ou seja, das densas contradições do real.

E é isso. :)
PS: Em tempo, eu não sei se sou um marxista libertário, mas eu tenho simpatia por boa parte de suas posições. É só esse caso da caracterização da China que acho que o debate pode partir de outro ponto para além da taxonomia do regime.

• • •

Missing some Tweet in this thread? You can try to force a refresh
 

Keep Current with Fernando L'Ouverture

Fernando L'Ouverture Profile picture

Stay in touch and get notified when new unrolls are available from this author!

Read all threads

This Thread may be Removed Anytime!

PDF

Twitter may remove this content at anytime! Save it as PDF for later use!

Try unrolling a thread yourself!

how to unroll video
  1. Follow @ThreadReaderApp to mention us!

  2. From a Twitter thread mention us with a keyword "unroll"
@threadreaderapp unroll

Practice here first or read more on our help page!

More from @louverture1984

19 Jun
Não vi o vídeo do canal Meteoro, gente. Lamento...

Fiz uma thread sobre isso em dezembro de 2019 (PRÉ-PANDEMIA e PRÉ-BABY!) que comento alguns problemas. Não parece que mudou muito. Fiz algumas leituras novas, mas não acho que há fatos novos.

Ainda assim, acho uma história delicadíssima. Recentemente me indicaram esse texto - que eu não conhecia - e alguns pontos de inflexão me sensibilizaram, em especial a ironia do fato de que o Ocidente acusa a China de islamofobia agora...

chuangcn.org/journal/two/sp…
(o que por sua vez, não ignora o fato de que a China é uma aliada do Ocidente na guerra ao terror, mas essa é outra história)

De toda a forma, há muita incompreensão no caso dos uighures, pois o próprio campo da identidade étnica na China é bastante diferente do Ocidente.
Read 5 tweets
17 Jun
Sabem o que é realmente impressionante? A imprensa passou anos construindo a glamourização da carestia - "batata doce, o vilão da Festa Junina".

Mas aí vem o Guedes, com toda sua falta de fato e fala: foda-se, vamos dar comida estragada.
Mas o pensamento de um Guedes não cai do céu. Essa mistura de "burrice com toques de psicopatia" tá enraizada em muitos lugares. Tentei mapear alguns dos mais importantes aqui.
1) A imprensa. Sim. Desde 2016, com o impeachment de Dilma, a forma pela qual os jornais noticiam a carestia (aumento de preços e falta de produtos) é sempre glamourizando a situação. Vocês já viram isso aqui, né?

Read 16 tweets
15 Jun
Em tempo: comer inseto é algo bastante normal, em culturas ameríndias, africanas, asiáticas e até europeias. Orientalismo aí é mato.

Só que com a Revolução Industrial e alimentação virou um troço massificado globalmente inclusive nos hábitos alimentares.
A massificação do consumo retomou um padrão de alimentação tipicamente europeu ocidental, focado em especial nas elites cortesãs - ou seja, opulência = consumo de carne.

Esse processo é tão intenso que a própria China tá vivenciando esse boom do consumo de carne.
Read 5 tweets
3 Jun
Meu delírio comunista é esse:

“na sociedade comunista, onde cada um não tem um campo de atividade exclusivo, mas pode aperfeiçoar-se em todos os ramos que lhe agradam, a sociedade regula a produção geral e me confere, assim, a possibilidade de hoje fazer isto, amanhã aquilo,...
...de caçar pela manhã, pescar à tarde, à noite
dedicar-me à criação de gado, criticar após o jantar, exatamente de acordo com a minha vontade, sem que eu jamais me torne caçador, pescador, pastor ou crítico."

(MARX, 2007. p. 37-38)
Nem todo mundo na esquerda gosta de retomar essa visão de comunismo do jovem Marx, mas eu sou um grande fã dela. Imaginar uma realidade futura na qual não sejamos definidos pela divisão social do trabalho é muito poderoso.
Read 6 tweets
3 Jun
Um dia queria escrever uma história dos #panelaços no Brasil. É um tema interessante, protesto social e suas múltiplas formas. E por aqui, ele foi apropriado por diferentes classes e diferentes ideologias - em diferentes contextos.
Mas a verdade é que panelaço tem uma variante latino-americana que é o cazerolazo. E como no Brasil, as "cazerolas" não têm uma ideologia específica.

No Chile, em 1971, viraram sinônimo de protesto da direita golpista contra Salvador Allende.
Mas tanto na Argentina, em 1982, quanto no Uruguai, em 1983, os cacerolazos foram apropriados pela luta contra a ditadura. Uma luta talvez ainda restrita a setores privilegiados...um professor meu, uruguaio, dizia que essa era um protesto das classes médias.
Read 19 tweets
31 May
É preciso entender que a Copa América é muito pior do que a realização dos campeonatos e eventos esportivos (que em função da pandemia, não deveriam estar sendo realizados).

São 10 delegações. Imprensa esportiva. Anunciantes. Sem torcida, claro - dentro do estádio.
Colômbia, Chile e Argentina rejeitaram o evento, mas fazem seus campeonatos nacionais. Por que? Ou por considerarem que a pandemia se agravaria, ou porque não queriam dar isenção fiscal pra Conmebol e anunciantes, ou simplesmente por causa dos protestos.
A gente pode dizer que eles estão sendo hipócritas, já que seus campeonatos nacionais tão rolando, mas as condições da Conmebol (que envolvem inclusive final com público) são inaceitáveis. Ou eram.

O governo brasileiro e a CBF acharam de boa.
Read 6 tweets

Did Thread Reader help you today?

Support us! We are indie developers!


This site is made by just two indie developers on a laptop doing marketing, support and development! Read more about the story.

Become a Premium Member ($3/month or $30/year) and get exclusive features!

Become Premium

Too expensive? Make a small donation by buying us coffee ($5) or help with server cost ($10)

Donate via Paypal Become our Patreon

Thank you for your support!

Follow Us on Twitter!

:(