Eu não vou nem falar de paywall. Vou falar de outra coisa.

Existe uma agenda anti-imprensa. Ela é multipartidária, ainda que seja mais forte em uns partidos do que em outros. Pior do que isso, ela está enraizada em nossa cultura...
Eu mesmo contribuí bastante para que essa agenda seguisse adiante. Mesmo no meu curso de jornalismo, era comum ver alunos (muitos) e professores (poucos) pregando contra a imprensa. Mas a coisa era anterior a isso.
Lembro de a própria imprensa explicar que "Não Enche", de Caetano Veloso, era uma dura crítica à imprensa. E que "Freedom! '90", de George Michael, era outra. Dava play no álbum do Mundo Livre, e estava lá Fred Zero Quatro cantando que "jornalistas mortos não mentem".
E eu as cantava.
Mas essa ficha só me caiu há poucos anos. Até então, eu esculhambava a imprensa na crença de que, uma vez esculhambada, ela não mais repetiria erros. Mal percebia eu que, com toda aquela gritaria, eu estava sendo útil a (mais) um projeto de poder.
Abrindo livros, a coisa fica mais clara. No início, por ser meramente escrita, a imprensa servia apenas a alfabetizados, que eram poucos. Logo, era um serviço da elite para a elite.
Pela necessidade de publicar informações acessíveis apenas ao centro do poder, a relação entre jornalista e poderoso sempre foi promíscua. Na prática, servia para que um poderoso jogasse a opinião pública contra outro poderoso.
Em paralelo, sempre foi fácil parecer imprensa sem ser imprensa. Quando o rádio surgiu, foi bem fácil ao fascismo/nazismo se disfarçar de imprensa. Quando a internet engrenou, foi bem fácil ao trumpismo/bolsonarismo se disfarçar de imprensa.
Carl Sagan escreveu um livro inteiro só para alertar dos riscos que a pseudociência oferece à ciência. Creio que falta alguém escrever um livro sobre os riscos que o pseudojornalismo oferece ao jornalismo — ou alguém já escreveu e eu não fiquei sabendo? Pode acontecer.
Acho a comparação válida porque, como a ciência, a imprensa não tem compromisso com erros do passado. A própria Globo, só para citar o exemplo mais emblemático, vem a público dizer que Roberto Marinho errou ao tratar o golpe de 1964 como uma iniciativa em defesa da democracia.
Outro dia, o antigo apresentador do Roda Viva veio a público assumir que errou ao defender, nos anos 1990, o consumo de cigarro em ambientes fechados.
E, sem querer me comparar a nenhum deles, eu aqui estou assumindo que errei ao tratar a imprensa com uma violência injustificável.
E o que diabos é essa tal "imprensa de verdade"? Creio que, se não coloca o bem coletivo em primeiro lugar, mas o interesse de um projeto de poder, ela não é imprensa, é militância. E a notícia ruim é que, por este simples filtro, resta pouca coisa.
A notícia pior é que a internet faliu a imprensa. Principalmente a "de verdade". Os principais pilares de sustentação foram implodidos. Praticamente não faz mais sentido imprimir jornal e revista. Os classificados viraram sites independentes...
E aqueles que intermediam anunciante e veículo cobram uma comissão três vezes maior.
Então, o que estamos testemunhando é uma reformulação completa do próprio modelo de funcionamento da imprensa. Nós somos a geração que recebeu a missão de descobrir como as futuras gerações serão bem informadas. E ela é bem difícil.
Uma notícia boa é que a falência tem permitido uma gigantesca renovação de quadros. E a nova geração me parece bem mais comprometida com o ofício do que com a fama fácil ou um salário alto — até porque este praticamente inexiste.
E, se você achar que estou tendo uma impressão errada, volte aos livros de história. Lá você encontrará a imprensa endossando vários dos maiores absurdos. Hoje, vivemos um dos maiores absurdos. Mas a imprensa é uma das forças que mais se levantou contra este.
Então, fica a dica. Sempre que a imprensa cometer um erro, critique o erro, mas não transforme a sua luta numa luta anti-imprensa. Você só tem a perder com isso.

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26 Jun
Precisamos conversar sobre autogolpe.

Nessa altura do campeonato, e sem considerar eventos imprevisíveis (como queda de jatinho, atentado a faca, etc), podemos afirmar o seguinte:
1. São grandes as chances de Jair Bolsonaro não conseguir se reeleger.

2. Como em 2018, ele estimulará o próprio eleitorado a filmar o processo de votação nas urnas eletrônicas.

3. Alguns problemas ocorrerão, pois sempre ocorrem, mas serão estatisticamente irrelevantes.
4. Contudo, mesmo estatisticamente irrelevantes, trarão números absolutos que correrão o WhatsApp, rendendo, portanto, a narrativa que Bolsonaro persegue há tempos com esse papo de voto impresso.
Read 22 tweets
17 Jun
Estadão, dezembro de 2018:
"O futuro ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Gustavo Bebianno, disse ao Estado que o governo Jair Bolsonaro fará uma “intervenção imediata” nos hospitais do Rio com gestão federal. Segundo ele, esses hospitais seriam dominados por milicianos."
Em fevereiro de 2019, Bebianno revelou ter fortes indícios de que ameaças sofridas pela comitiva do Ministério da Saúde tinham partido de milicianos.
g1.globo.com/politica/blog/…
Read 5 tweets
13 Jun
Um “eu avisei” do bem. Não sei se muitos prestaram atenção, mas França estava em 2020 mendigando voto bolsonarista. Algo que Doria fez em 2018, não estou me fazendo de louco.

Mas o ponto é: sempre que as opções forem ruins, precisamos votar para reduzir o estrago. Sempre.
Agora, o outro “eu avisei”.

Eu avisei que o apoio recebido por Bolsonaro das Forças Armadas seria o nosso maior obstáculo.
Avisei que Bolsonaro tentaria lotar ruas com objetivos antidemocráticos.
Read 11 tweets
12 Jun
Deixa eu tentar ser mais franco. Mas, ao mesmo tempo, mais polido. Espero que eu consiga.

Os mais de 55 milhões de votos confiados a Bolsonaro em 2018 foram 55 milhões de graves erros. Indiretamente, levaram à morte centenas de milhares de brasileiros...
O argumento de que a corrupção do outro lado causaria tantas mortes quanto as sabotagem que sofremos no combate à covid-19 é, me desculpem a sinceridade, constrangedor. Minha sugestão é de que o abandonem o quanto antes.
A política corriqueiramente nos coloca em situação em que somos obrigados a escolher entre duas opções ruins. Numa situação dessas, quase nunca as duas opções serão igualmente ruins. Haverá quase sempre a ruim e a pior.
Read 8 tweets
11 Jun
O papel de um opositor não é o de meramente protocolar pedidos de impeachment e soltar frase de efeito em redes sociais. É principalmente o de somar esforços para conter o governo.

A oposição não quer o impeachment de Bolsonaro. Quer apenas desgastá-lo até 2022.
Se quisesse o impeachment, já estaria há mais de ano enfileirando reuniões com empresários, influenciadores, políticos independentes e da base do governo. Já teria elaborado um discurso único que conseguisse unir os interesses de recortes tão distintos do nosso jogo político...
Já estaria pautando a imprensa com o tema manhã, tarde e noite. Estaria dando entrevistas em telejornais e talkshows. Estaria à frente de todos os protestos, virtuais, de janela ou de rua, liderando a revolta da população. Estaria contando votos para o impeachment de Bolsonaro.
Read 8 tweets
21 May
Deixa eu tentar falar mais sério sobre isso.
Você quer acabar com a corrupção no Brasil? Eu também quero.

Mas não será em outubro de 2022 que você irá acabar.
Você quer acabar com o sebastianismo no Brasil? Eu também quero.

Mas não será em outubro de 2022 que você irá acabar.
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