Se tratamentos "alternativos" ou tidos como ineficazes não funcionam, por que pareceram funcionar pra alguns?
Afinal, tenho certeza que você já ouviu a clássica (e inútil) frase "mas eu tomei ivermectina e me curei".
Segue o fio então.
1. Efeito das expectativas: a esperança que um tratamento funcione pode trazer melhora em desfechos subjetivos como "mal estar", mas nunca em desfechos duros como "morte". Erroneamente chamado de "efeito placebo" porque o placebo não possui efeito, as expectativas sim.
2. Retorno à média: bastante conhecido em várias áreas do conhecimento humano, é o que acontece quando eventos anormais (ficar muito doente) é sucedido por um evento médio (estar sadio). A melhora após o uso do tratamento "de mentirinha" pode se dever tão somente a isso.
3. Confundir coincidência com causalidade: até médicos têm dificuldade em perceber isso. Mas só porque algo aconteceu antes da melhora ou cura, não significa que foi aquilo que levou a esse desfecho.
Pra provar causalidade, metodologias robustas de pesquisa são necessárias.
4. Viés de confirmação (ou até de crença): por acreditar muito em algo que é atacado e tido como ignorante ou marginal à ciência, uma pessoa pode se apegar apenas às fracas evidências de que aquilo que ela acredita funciona de verdade. Ela ignora os amigos que tomaram e morreram
5. Uso de múltiplos tratamentos: pelo mesmo viés do item 4 ou por simples esquecimento, um sujeito pode não mencionar que usou também dexametasona, esse sim um medicamento de eficácia comprovada na COVID.
É por esses fatores, aliás, que relato de caso (seja no twitter, seja em rádio, seja em congresso médico) NÃO SÃO capazes de confirmar hipóteses sobre terapias.
Para comprovar que uma terapia funciona ou causa dano, é preciso muito mais que um simples relato.
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- a maioria dos egressos não é ensinada a interpretar (corretamente) um simples exame
- a maioria não sabe interpretar corretamente a resposta de um paciente a uma terapia (propício a acreditar em charlatões)
- sim, os dois pilares da nossa profissão
- a maioria não sabe interpretar artigos científicos (a disciplina que se presta a isso é negligenciada por focar em cálculos inúteis e pouco na prática)
- acham que passar na prova de residência é atestado de sabedoria. A prova é, sob raras exceções, um festival de cloroquinices
- pelo sistema de provas irrealistas, pouco espaço se dá aos questionamentos. Muito se dá ao ato de decorar dogmas.
- em muitas universidades e disciplinas, o método é a imposição do terror aos jovens, que podem querer espelhar isso em seu futuro.
Pequeno tutorial de como fazer QUALQUER terapia parecer ser útil (e lotar o consultório de pacientes enganados):
1. Mostre um mecanismo que explique o tratamento. Nem precisa ser real, basta ser simples o bastante pra fazer sentido na cabeça do leigo e do médico leigo.
2. Passe uma imagem de infalibilidade. Nada na Medicina é 100% eficaz e seguro, mas os pacientes não sabem disso e ainda bem! Que continuem sem saber.
3. Cometa cherry picking. Omita estudos de boa qualidade e mostre a seu paciente apenas aqueles que confirmam sua narrativa
4. Nomeie pelo menos três gurus (obviamente charlatões) que passam um ar de “a Medicina não sabe o que eu sei”. Quanto mais famosos atendidos no Instagram, melhor.
5. Passe um ar de vanguardista. O paciente não conseguirá perceber a diferença entre isso e irresponsabilidade.
Mais um estudo de um proeminente “cientista” sobre ivermectina, um medicamento ineficaz contra covid, é despublicado por fraude. Toda a literatura sobre esse tema é composta por fraudes ou estudos fracos
Entenda essa fraude e aprenda a se proteger dos charlatões e manipuladores.
A Journal of Intensive Care Medicine despublicou o estudo de Pierre Kory e Paul Marik por indícios de fraude em sua pesquisa.
Nesse estudo, os autores apontaram uma mortalidade de 6,1% e compararam com a mortalidade da mesma população em outros artigos, que era de 15,6 a 32%.
Isso não engana qualquer pessoa que entende o mínimo de interpretação de estudos. Essa metodologia, mesmo antes da fraude, é podre.
Mais podre ainda é a fraude: a mortalidade dos usuários dos medicamentos foi de 28%, segundo o hospital onde estavam os pacientes.
Ednaldo dá entrada no PS com relato de síncope (desmaio).
Pela solicitação de um exame comum em emergências (troponina), Ednaldo implantou um stent em sua coronária.
Um erro foi cometido aqui e você, possivelmente, não percebeu. Porque é tão difícil detectar falso positivos?
No hospital em que Ednaldo resolveu ir, existe até um "protocolo" para pacientes que queixam de desmaio (ultrapassado e que objetiva o lucro do hospital, mas existe):
- Eletrocardiograma, ecocardiograma, Doppler de carótidas e TC de crânio, troponina.
Ednaldo que, na verdade, nem desmaiara, apenas se sentira tonto (mas ninguém perguntou) se sentiu bastante acolhido e aproveitou a oportunidade, afinal "exame nunca é demais". "O convênio está pagando mesmo". "Esse hospital é bom".
Wesley teve um diagnóstico falso em uma ida ao hospital.
Marrone é o médico que errou. Mas Wesley e Marrone não perceberam.
Pelo contrário, Wesley é grato ao seu médico. E Marrone acaba de adquirir uma experiência que causará dano aos seus próximos pacientes.
Quer saber por que?
Um dia antes da chegada de Wesley, o Dr Marrone passou por isso:
- O seu mentor solicitou uma angiotomografia para um paciente com escore de Wells baixo. Apesar de achar estranho, Wesley foi surpreendido pelo resultado positivo. O paciente tinha TEP*.
* Traduzindo:
- TEP: trombo-embolismo pulmonar, uma doença potencialmente muito grave.
- Angiotomografia: um exame indicado pra seu diagnóstico
- escore de Wells: um cálculo que fazemos para ver se o paciente tem indicação de fazer a angiotomografia. Só escores altos indicam.
O estudo da Prevent Senior já era inexpressivo antes de ser comprovado fraudulento.
Serviria, no máximo, para imprimir e usar as folhas para acender lareira. Esse fio lista as razões e também o grau de dificuldade de percebê-las.
1. É um estudo observacional. Isso significa que os pacientes não foram incluídos nos grupos por sorteio - maneira justa que reduz incidência de vieses e fraudes.
Observacional não tem poder de determinar eficácia de terapia nenhuma.
Nível de dificuldade: fácil
2. Não foi de pacientes com covid. Isso mesmo. O estudo cita que foi de pacientes com sintomas gripais que ligaram pra telemedicina da Prevent.
Esse critério de inclusão determina que nenhuma conclusão pode ser feita sobre covid.
Nível de dificuldade: fácil.