Wesley teve um diagnóstico falso em uma ida ao hospital.
Marrone é o médico que errou. Mas Wesley e Marrone não perceberam.
Pelo contrário, Wesley é grato ao seu médico. E Marrone acaba de adquirir uma experiência que causará dano aos seus próximos pacientes.
Quer saber por que?
Um dia antes da chegada de Wesley, o Dr Marrone passou por isso:
- O seu mentor solicitou uma angiotomografia para um paciente com escore de Wells baixo. Apesar de achar estranho, Wesley foi surpreendido pelo resultado positivo. O paciente tinha TEP*.
* Traduzindo:
- TEP: trombo-embolismo pulmonar, uma doença potencialmente muito grave.
- Angiotomografia: um exame indicado pra seu diagnóstico
- escore de Wells: um cálculo que fazemos para ver se o paciente tem indicação de fazer a angiotomografia. Só escores altos indicam.
Dr. Marrone ficou assustado com esse ocorrido porque pensou em quantos pacientes já liberou com TEP, visto que não faz angiotomo para todo mundo.
E pensou “agora vou pedir angiotomo pra todo mundo”.
Perceba que Marrone, em nenhum momento, ponderou que o exame poderia ser falso.
E aí, quando chega o Wesley, o raciocínio clínico do Dr. Marrone caiu no viés (ou erro) de disponibilidade (é mais fácil pensar nas hipóteses que você conhece ou que te marcaram). E pediu a angiotomo.
O escore de Wells de Wesley era zero.
O médico chegou a se gabar no grupo de zap do hospital porque percebera um S1Q3T3 no eletrocardiograma do Wesley.
Marrone aprendeu quando estudava para a prova de residência que esse sinal é altamente específico (97%). Só não aprendeu que esse 97% não indica 3% de falso positivo
Na verdade, usando a fórmula correta (a que Marrone não conhece porque pouca gente usa - a razão de verossimilhança), ele descobriria que 3% são os verdadeiro positivos, mesmo com 97% de esp.
Quem não sabe como cheguei a esse resultado interpretou errado todos os exames na vida.
Depois veio a angiotomo, um exame com 90% de sensibilidade e 92% de especificidade (valores considerados muito bons).
Só que Marrone não conhece a fórmula correta (afinal, as provas de residência não cobram). E não sabia que a probabilidade de falso positivo ainda era de 74%.
Dr. Marrone explicou que essa é uma doença gravíssima e que iniciaria o tratamento pra já. Repetiria o exame em 3 meses para verificar se o tratamento funcionara.
Agora pensem comigo: como Wesley não tem nada, o tratamento definitivamente “funcionará”. Ou não?
Não há nada que revise esse diagnóstico. Esse é o “viés da ignorância”. Como já se espera que o próximo exame seja normal (por causa do tratamento), quando ele vier normal, ninguém suspeitará do primeiro diagnóstico.
Ele será falso para sempre.
Mesmo que Wesley sangre (efeito adverso do tratamento do TEP), ele será grato ao astuto Dr. Marrone que descobriu aquele TEP nele.
Se não sangrar, Wesley será igualmente grato.
Wesley não viveu a realidade em que não correu esse risco. Esse é o “viés do gato de Schrodinger”.
Wesley, como qualquer usuário do twitter, vai comentar em posts que criticam exames errados na hora errada falando “tive um TEP sem sintomas. Se não fosse o exame que meu médico pediu, estaria morto".
Usuários de twitter não conhecem o conceito e os danos de um falso positivo.
A mídia foca muito, e com razão, nos casos falso-negativos porque uma hora suas consequências aparecem.
As consequências do falso-positivo não são tão aparentes assim por causa dos vieses do gato de Schrodinger e da ignorância, já citados.
Ambos são igualmente danosos.
Dr. Marrone, por sua vez, agora possui dois casos(!) de TEP sem sintomas. Quando tiver cabelos brancos, ele possuirá umas dezenas de casos assim. A maioria falsa.
Os cabelos brancos do Dr. Marrone cresceram sobre uma fundação fraca. Os seus pacientes, talvez, jamais saberão.
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O estudo da Prevent Senior já era inexpressivo antes de ser comprovado fraudulento.
Serviria, no máximo, para imprimir e usar as folhas para acender lareira. Esse fio lista as razões e também o grau de dificuldade de percebê-las.
1. É um estudo observacional. Isso significa que os pacientes não foram incluídos nos grupos por sorteio - maneira justa que reduz incidência de vieses e fraudes.
Observacional não tem poder de determinar eficácia de terapia nenhuma.
Nível de dificuldade: fácil
2. Não foi de pacientes com covid. Isso mesmo. O estudo cita que foi de pacientes com sintomas gripais que ligaram pra telemedicina da Prevent.
Esse critério de inclusão determina que nenhuma conclusão pode ser feita sobre covid.
Nível de dificuldade: fácil.
O mito do médico "experiente", mas que na verdade é um mecanicista..
O médico mecanicista é aquele que acha que conhece o efeito clínico de uma droga apenas por conhecer seu suposto mecanismo.
E esse método, apesar de agradável aos leigos, é ultrapassado. Segue o fio.
O conhecimento de como o corpo humano funciona e como os medicamentos atuam nele é mais nebuloso do que se imagina.
Na verdade, revistas de fisiologia, farmacologia e demais ciências "básicas" ainda são publicadas periodicamente trazendo suposições e novidades.
Não se publicam revistas sobre suposições de novas ruas na cidade de São Paulo porque isso é relativamente simples: um ser humano vai lá e constrói. Tudo registrado. Não há suposições a se fazer sobre isso.
Não fomos nós que construímos o corpo humano. Por isso a dificuldade.
Por que tantos brasileiros acreditaram no conto de fadas de tratamentos que nunca foram sequer promissores? Por que vc ponderou se deveria tomar isso? Por que tantos médicos e convênios se aproveitaram de você para enriquecer?
Fiz esse fio com algumas razões dessa ilusão coletiva
1. Você acha que toda doença tem um remédio.
A famosa frase "esse doutor é ruim, não passa nada" leva médicos a prescreverem algo mesmo que não haja necessidade pra garantir satisfação. O paciente e o médico (leigo) acham que houve benefício mesmo que o nada já fosse suficiente.
2. Como os médicos (leigos) nunca ponderam que um exame pode ser falso positivo ou falso negativo, é passada a falsa impressão que sempre acertamos tudo.
Leigos têm facilidade de reconhecer os falso negativos. Quase nunca reconhecem os falso positivos, igualmente danosos.
Em Medicina, existe uma limitação poucas vezes confessada em consultório (porque isso quase que invariavelmente se traduz em demonstração de fraqueza): é que esse é um ofício de incerteza.
Nesse fio, eu discorro sobre a natureza probabilística da Medicina.
A Medicina é uma ciência da incerteza porque:
1. Trabalhamos com incerteza na interpretação de exames 2. Trabalhamos com incerteza na interpretação da resposta dos pacientes às terapias
Vou explicar ambos.
1. Incerteza na interpretação de exames:
Nas mãos de um médico minimamente bem formado, a interpretação de um exame não é “positivo x negativo”, mas “verdadeiro x falso positivo, verdadeiro x falso negativo”.
Só isso já acrescenta uma camada de dificuldade maior à profissão.
Um congresso on-line com várias autoridades discutindo diferentes aspectos da Medicina. Esse é o Sanarcon 2021. E vai acontecer esse sábado, 18 de setembro.
Vou elencar aqui algumas razões para você, médico ou estudante, não perder esse congresso de altíssimo nível. Segue o fio.
A querida Natalia Pasternak (@TaschnerNatalia) vai falar sobre "Ciência no cotidiano", tema que dá nome a um dos seus livros.
Ela vai trazer razões pelas quais nós devemos ser críticos e educados quando analisamos evidências científicas.
Seguindo a mesma linha, Luis Correia (@LuisCLCorreia), uma verdadeira inspiração para mim e muitos outros médicos, falará sobre a "Incerteza na Medicina".
Esse é um tema da maior importância, visto que nossa ciência é uma arte de probabilidades e não há como fugir disso.