Você já parou pra pensar que todo mundo vê o MESMO jogo? Como pode ter tanta opinião diferente sobre a mesma coisa?

O gol do Deyverson na Libertadores é um exemplo.

Foi uma falha do Andreas. Foi também uma tática criada pelo Palmeiras. As coisas não se anulam!

Segue o fio⬇️
O escritor David Foster Wallace diz que é impossível sabermos a verdade, porque tudo o que vivemos e pensamos teve um protagonista, um filtro, que é nossa mente.

Tudo o que você sabe sobre o mundo tem você como protagonista. Logo, é impossível não ter viés. Por mínimo que seja.
O futebol é o maior exemplo do que Wallace fala.

O jogo que você vê é aquele que sua mente diz pra você. Não exatamente o que aconteceu. Por isso tem tanta opinião diferente sobre o gol de Deyverson: cada um puxa a sardinha pra um lado diferente da história.

Daí vem o conflito.
Pra quem torce pro Flamengo, o jogo se resumiu a uma falha bisonha e individual do Andreas. Esse é um pensamento confortável: estamos programados a ver futebol tentando achar bodes expiatórios, que em 99% dos casos é o técnico, e quando há uma falha grande, é um jogador.
Já quem torce pro Palmeiras diz que o gol foi mérito do Deyverson, que girou o pé antes de finalizar, mas que viu o companheiro mal posicionado e pressionou primeiro o David Luiz, depois o Andreas e retomou a bola. Não é problema do Deyverson se o outro lado tava mal organizado.
E se eu te disser que as duas coisas podem coexistir?

Que o gol foi um erro do Andreas, provocado pela má DECISÃO do jogador e por uma situação tática PENSADA por Abel Ferreira no intervalo?

Pensando assim, a gente não se aproxima de ver o jogo de uma forma mais ampla?
O Flamengo jogou mal o 1º tempo e melhorou no 2º.

O grande nome dessa melhora...foi o Andreas.

Ele mudou o posicionamento. Passou a jogar mais à frente, nas costas da pressão do Palmeiras. Assim, ele tinha espaço e tempo para receber a bola e pensar o jogo pros atacantes.
Esse posicionamento cansou o Danilo e Zé Rafael, que saíram. Danilo Barbosa entrou e ficou confuso com o posicionamento do Andreas. Isso gerou ainda mais espaço em campo, e o Arrascaeta começou a buscar a bola ali, pra servir ao ataque.

A chance do Michael nasce assim.
Veiga, que encaixou no Andreas o primeiro tempo inteirinho, cansou. Passou dos 80 aos 90 trotando em campo.

Ele deu lugar pra um jogador que tem a característica de pressionar e estava mais desncasado do que ele.
Mas antes de entrar, Deyverson é orientado por João Martins, auxiliar de Abel, junto do Danilo Barbosa.

João mostra uma foto, que parece ser da saída de bola do Flamengo, com os palmeirenses olhando atentamente. Era uma mudança na forma de marcar que deu tão errado na 2ª etapa.
Quando a prorrogação começa, o Palmeiras fica 3 minutos com a bola.

No primeiro segundo do Flamengo com a posse, dá pra ver uma disposição totalmente diferente do Palmeiras.

Olha lá o Rony, Deyverson e o Wesley em funções distintas do que fizeram nos lances acima.
Um minuto ANTES do gol, acontece isso: o Deyverson pressiona o David Luiz, o Rony pega o R. Caio e o Danilo Barbosa sai lá de trás e vem marcar o volante que fica na frente quando o Arão se enfia entre a zaga do Flamengo.
Deyverson faz a falta e o Arão, vendo que ficou difícil pro zagueiro jogar, sobe e ocupa a região do lateral.

Isso provoca um espaço vazio no campo, que o Andreas ocupa, no intuito de ajudar os zagueiros a avançarem e escaparem da pressão do Palmeiras.
O Andreas passou 45 minutos sem receber pressão nenhuma do Palmeiras, com muito tempo pra jogar. Nesse instante, o Flamengo não tinha ficado nem 30 segundos com a bola.

Era IMPOSSÍVEL entender a mudança de marcação que o Palmeiras fez no intervalo.
No gol, o MESMO DESENHO da pressão acontece. O Danilo Barbosa tira a linha de passe do Arão, que trocou de posição com Andreas. O Deyverson novamente pressiona o David Luiz e obriga o passe a ir pro Andreas.
Só que o Andreas lê a jogada toda errada.

Primeiro, ele fica olhando pro Danilo Barbosa, o único que encurtou pra ele no segundo tempo). E não calcula que o Deyverson, que tem como característica pressionar zagueiros até´o fim, pode trocar a pressão no David Luiz nele.
O erro de cálculo faz ele posicionar mal o corpo e virar de frente pro gol, o que é péssimo, porque não te permite olhar pro campo e entender o que está acontecendo.

E o Deyverson tem um mérito IMENSO de trocar a pressão. Um milésimo de segundo a menor e ele não teria chegado.
É tanta coisa acontecendo que é impossível dizer, com exata precisão, se foi uma tática do Palmeiras ou uma falha individual do Andreas.

E se a gente assumir que foram as duas coisas...ao mesmo tempo...que uma não exclui a outra?

Que tudo tá interligado!
Jorge Jesus e Abel Ferreira, que venceram as últimas 3 Libertadores, já deram declarações de que o "jogador brasileiro precisa aprender a jogar sem a bola".

Acho que isso vale também pro jeito como a gente assiste o jogo e interpreta o que acontece em campo.
Se a gente só olha pra bola, tendemos a buscar culpas individuais pro que acontece em campo. É sempre o jogador que erra ou o técnico que é o culpado. Nunca tem mérito do outro lado, nunca tem o peso do CONTEXTO, nunca tem o coletivo.
Veja bem: NINGUÉM tá dizendo que NÃO OLHAR PRA BOLA!

Estamos apenas falando pra olhar TAMBÉM para o entorno e entender que o futebol é um esporte essencialmente tático, técnico, físico e mental. Que o contexto afeta o individual. E que o peso do caos é imenso.
Essa palavra, caos, é fundamental. Futebol é caótico.

Pois bem: o que você, como treinador, faz com isso? Aceita e confia que a vida vai te levar, vida leva eu.

Ou tenta fazer sua parte, que é criar situações e contextos para diminuir o caos e aproximar o time da vitória?
Quando o Abel redesenha a pressão do Palmeiras, ele não "prevê" o gol. Ele apenas tenta criar uma nova situação na saída de bola do Flamengo, tenta provocar o CONTEXTO pra alguém errar e para aproximar o Palmeiras de criar espaço pra um gol.
Isso nos leva a um debate, muito mais importante do que demitir ou contratar treineiro:

Como o treinador do seu time vê o jogo? O que ele faz para que essas falhas aconteçam no adversário e não aconteçam no seu time.
Todo mundo tem o direito de ver o jogo que quer e formular as opiniões que bem entende.

O problema é quando essas opiniões levam a conclusões precipitadas, como "quebra tudo" e "demite todo mundo" na parte do Flamengo, e "vencemos e não precisamos melhorar" pro Palmeiras.
Um gol nunca é só um gol.

O gol que decidiu a Libertadores é uma falha individual, ao mesmo tempo que é uma situação tática, provocada por outro time.

As duas coisas podem conviver juntas. E podem ser estudadas. Porque futebol pode, sim, ser estudado.

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