Dizem que o Brasil tem 200 milhões de treinadores.

Mas você entende aquele um que tá lá na beira do gramado?

O jogo em que o Palmeiras bateu recordes no Brasileiro é um bom exemplo de como é fundamental entender a lógica do seu treinador para compreender suas decisões. Fio🔽
A vitória do Palmeiras por 2 a 1 no Sport foi o jogo em que o time mais chutou (36), acertou o gol (16) e acertou cruzamentos (14) no ano.

Foi, inclusive, o jogo em que uma equipe mais finalizou a gol e mais acertou o gol em qualquer jogo do Brasileirão desde 2013.

Massacre.
Parte da melhora do time veio com a entrada de Gustavo Scarpa no 2º tempo, no lugar de Danilo - que vem fazendo algumas partidas abaixo.

Scarpa é o maior assistente do Brasileirão. Foi dele os escanteios dos dois gols, de cabeça, que deram a vitória.

(lembre disso, escanteio)
É muito natural que pensar que alguém que sai do banco e muda um jogo dessa forma merece ser titular, né?

E isso cria uma certa tensão entre o torcedor e o treinador, como se o técnico fosse "burro" de não ver aquilo que é visto por todo mundo.

Mas tudo tem seu motivo.
Abel explicou, na coletiva, o motivo de Scarpa ainda não ser titular no Palmeiras. Tá lá no site do @geglobo, tudo explicado e mastigado.
ge.globo.com/futebol/times/…
Abel explicou que ele quer três tipos de meiocampistas no time: um cinco, um oito e um dez, e até falou quem são eles:

"Nós temos cinco com o Felipe Melo ou Danilo Barbosa, o oito que pode ser o Patrick ou Danilo, e dois dez, o Scarpa ou Veiga. Como só posso escolher três..."
Sabemos "o que". Agora vamos para o "como". O que esses três jogadores fazem em campo? O jogo mostra que:

- o 5 dá cobertura para a defesa
- o 8 ajuda na cobertura defensiva e construção das jogadas
- o 10 atua mais perto dos atacantes e entra na área

Olha eles aí.
Bom, para entender a entrada do Scarpa, assim como para entender sua ausência da escalação, é primeiro preciso compreender a função de quem ele substituiu, no caso o Danilo (ou o Patrick, ou o Zé Rafael).

Um camisa 8 que dá cobertura e ajuda na construção das jogadas.
O camisa 8 precisa ter fôlego e entendimento de espaço para apoiar o ataque ou encostar no camisa 10. Geralmente é um elemento surpresa.

Como o Palmeiras joga com os dois laterais espetados e Dudu vindo da ponta, atacar esse espaço ajuda o time a criar chances na área.
E quando o time perde a bola? É aí que mora o x da questão: o camisa 8 é o principal elemento de ajuda na cobertura defensiva.

O que é cobrir?

É ajudar um companheiro.
Então se o Felipe Melo sai lá de trás pra pressionar a bola, o 8 precisa correr logo e encostar em alguém, pra não deixar os zagueiros sozinhos, como Danilo faz aqui nesse lance, em que o Palmeiras perde a bola e rapidamente se organiza para recuperá-la.
O contrário pode acontecer: o camisa 8 salta, pressiona a bola e encurta o tempo do adversário jogar enquanto o 5 cobre os zagueiros (quando a defesa tá retornando) ou apenas se coloca atrás da linha da bola para criar dificuldade para o outro lado jogar.
Esses momentos de cobertura defensiva, criação de vantagens sem a bola...são momentos que normalmente não são tão vistos ou lembrados.

A gente quer ver gol, quer ver espetáculo, então é muito normal achar que um jogador que melhora essa expectativa precisa estar no time.
Faz parte da representação do futebol enquanto jogo, com o elemento espetáculo, um artifício de diversão.

Só que a lógica do jogo é um pouco diferente. Por lógica, entenda o que os jogadores fazem (a técnica) e como o time gere e organiza espaços (a tática).
Se colocarmos Scarpa no Danilo, provavelmente o Palmeiras iria sofrer muito mais contra-ataques, dado que o camisa 14 não tem a mesma característica técnica (o pé posicionado na bola para roubar) e táticas (a rapidez em identificar a cobertura) para cumprir o mesmo papel.
E sabe quem explicou isso ao próprio torcedor?

Ele mesmo, Abel Ferreira, o técnico, no lugar que ele tem de comunicação com o torcedor: a coletiva após o jogo.

Olha o que Abel disse no tweet abaixo.
"O Veiga é um jogador mais equilibrado atacando ou defendendo. E o Scarpa sabe disso, eu já disse para ele. Os 50% que ele tem com bola é dos melhores, isso os números provam. É o sem bola. É ser agressivo ao desarmar, estar a um metro do adversário".
Abel inclusive justificou a entrada do Scarpa.

"Nossa função é olhar para o jogo e ver o que ele pede. No intervalo entendi que precisávamos ser mais agressivos e coloquei o Scarpa. Quando quero que a equipe fique mais aguda, o Scarpa nos dá isso."
Por se movimentar muito, Scarpa encostava mais vezes no ataque. E quando recebia a bola, tentava SEMPRE uma jogada à frente, seja uma finalização ou um passe mais difícil de ser feito, ou um cruzamento.

Tentar algo mais perto do gol é o que chamamos de agudo ou vertical.
Ué, mas você acabou de dizer que o Scarpa não faz a função do Danilo. Por que deu certo?

Porque Abel mudou a forma como o Palmeiras fazia a cobertura defensiva e se organizava lá atrás.

Não foi apenas substituir e pronto. Teve toda uma mudança pra "suportar" a entrada.
Como Scarpa não voltava tanto, Felipe Melo teve que ficar mais centralizado e Marcos Rocha foi exigido ao cobrir todo o corredor direito. Veiga também teve que se sacrificar e correr mais, como na imagem.
Como Rocha apoiava muito (ainda mais no setor do Dudu), Abel teve que proteger aquele lado e mudou a função de Gómez. Ao invés de ficar sempre centralizado, ele virou o "zagueiro da caça" quando a bola ia naquele setor e Rocha não tinha retornado.
Tudo isso foi explicado pelo Abel na coletiva:

"Disse para ele que íamos arriscar e que ele deveria ser rigoroso no posicionamento central, não posso dizer os segredos. Mas para nós arriscarmos com o Scarpa, o Felipe Melo e os dois zagueiros tinham que ser muito disciplinados."
Tudo o que o treinador fez teve um motivo: o contexto do jogo.

O Sport abriu o placar cedo, se retraiu todinho e o Palmeiras precisava melhorar a construção das jogadas e ter uma bola parada mais forte. Scarpa é o jogador que fez isso.
Para entender o contexto, precisamos olhar também para as finalizações:

O Palmeiras chutou 16 vezes no gol. 3 vezes no 1º tempo, 13 no 2º tempo.

Foram 5 finalizações a partir de uma construção, de bola tocada da defesa ao ataque. 2 sem Scarpa, 3 com Scarpa.
Se a entrada de Scarpa não influenciou na construção das jogadas, mudou TOTALMENTE o aproveitamento na bola parada.

Das 13 finalizações no 2º tempo, SETE foram de bola parada.

Os dois gols que decidiram o jogo foram assim.
Sacou que não é tão simples simplesmente pedir o cara que mudou o jogo no time e achar o treinador um "burro", um isso ou aquilo?

Não é mais proveitoso ver as coletivas e entender o porquê das decisões? Assim, dá pra concordar ou discordar com embasamento, de maneira pró-ativa.
Ah, mas o papel do torcedor é torcer.

É um direito irrefutável que o futebol seja, para aqueles no estádio, uma manifestação cultural. Um ato de identidade.

Verdade.

Mas acho também que torcer pode ser mais colaborativo. Usei o Palmeiras como exemplo, serve pra qualquer time.
O torcedor pode usar o entendimento do jogo para entender as decisões do treinador, da diretoria e do jogador e saber quando cobrar o que tá errado, quando manter o que tá certo e contribuir de forma presente com o futuro do clube.

Não interfere no direito irrefutável de torcer.
O futebol jamais será um jogo puramente racional - ainda bem! Se fosse racional, seria chato e sem graça. Boa parte do encanto do esporte está no fato dele ser caótico, imprevisível.

Afinal, é o esporte coletivo em que há maior equilíbrio de forças e mais eventos randômicos.
Por isso, não faz mal tentar racionalizar as coisas um pouco, principalmente quando alguém, como Abel Ferreira, vai lá e explica suas decisões.

Concorde ou não concorde. Goste ou não goste.

Há lógica em Scarpa ainda não ser titular. Assim como há lógica no trabalho de Abel.

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Só que essa escolha é válida, benéfica, boa ou qualquer adjetivo que você quiser colocar, desde que bem executada.

Tem regra impedindo isso? Não.
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Então pode atuar dessa maneira.
Não tem problema algum.
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