Há uma discussão muito grande sobre falta de drible no futebol.

Esse debate é respondido sempre do ponto de vista individual: falta talento, falta driblador, o técnico é ruim…

Se olharmos para o jogo, veremos que a resposta não está no indivíduo, mas sim no coletivo. 🔽
Muito do que pensamos sobre o drible vem do mito, do imaginário construído sobre ele. Afinal, o futebol é um fenômeno dentro de uma coisa maior, o jogo, uma atividade lúdica. Competitiva, mas lúdica, o que faz com que o futebol jamais seja uma atividade puramente racional.
É normal puxar esse imaginário quando julgamos que falta drible, seja naquele time que não consegue furar uma retranca e fica tocando de lado (alô, Flamengo) ou naquele jogo da Seleção em que o Twitter vira um lamaçal de reclamações.
E aí, ouvimos coisas como:

- o técnico está robotizando os jogadores
- faltam dribladores no futebol brasileiro
- o futebol atual não permite drible
- tá tudo muito chato
O problema não é achar isso.

É como isso é usado para condenar, distorcer e, no fim das contas, prejudicar o futebol.

Já percebeu que sempre há um problema, que ganha a figura de um jogador ou de um técnico, e vende-se que a troca dessa figura soluciona tudo?
Quando olhamos para o todo, vemos que o problema sempre é maior que uma parte.

Um exemplo está no que Carlo Ancelotti fez no Real Madrid no clássico contra o Barcelona.
Vinícius Júnior e Rodrygo, conhecidos por serem dribladores, jogaram abertos num 4-1-4-1. O diferencial não foi a posição ou função: foi a forma como o Real se organizava no espaço útil de jogo para potencializar uma das características mais fortes deles.
Nas etapas de construção, a equipe se posicionava como na imagem: os dois bem abertos, pisando a linha de fundo. Nenhum deles fazia o movimento de flutuar por dentro ou recuava e buscava a bola. Eles ficavam quase que parados nessa etapa inicial da construção da jogada.
Benzema interagia muito mais com o meio e muitas vezes ia até a linha de Modric, mas Rodrygo e principalmente Vini tinham que preencher o corredor quando o time tinha a bola.

Esse movimento tinha o simples intuito de criar o contexto para que eles driblassem.
Como não flutuavam, eles não precisavam virar de costas pro gol pra receber a bola. Ficavam com o corpo na diagonal: um pé pronto pra dominar e o corpo posicionado para correr.

Além disso, eles recebiam com apenas um marcador próximo. Sem cobertura pra retomar a bola.
Além de gerar um contexto que favorecia o drible, Ancelotti gerou um outro macro: um contexto que desfavorecia a organização defensiva do Barcelona.

Quando Vini driblava Mingueza, ele atraía a marcação de Eric Garcia e mais um volante, deixando menos gente pra defender a área.
Olhando assim, é muito comum, no linguajar popular do futebol, dizer que Vinícius teve “liberdade” em campo e não teve obrigações defensivas.

Pelo contrário.
Vinícius tinha sim que volta pra marcação. Se a bola estava em seu lado, ele marcava um alvo (Mingueza) e o Real, naquele setor, fazia encaixes. Veja Mendy fora do alinhamento com os defensores, encaixando em Dest enquanto Kroos realiza outro encaixe.
Já com a bola no lado oposto, ele voltava na mesma linha de Benzema. Com isso, Ancelotti fazia com que ele economizasse energia e, num eventual contra-ataque, recebesse a bola mais à frente, nas costas da defesa, numa situação de campo muito aberto para conduzir e driblar.
Vinícius foi um dos melhores, se não o melhor jogador do Real Madrid no jogo. Acertou cinco dos sete dribles que fez e deu o primeiro dos quatro passes no contra-ataque do primeiro gol.

Ele também é o líder de dribles na Liga dos Campeões, com 16 feitos.

O vice-líder?

Neymar.
Ano após ano, o Brasil exporta jogadores que tem o drible como uma de suas principais características. Podemos citar três em destaque: Vinícius Júnior, Antony e Neymar. Tem ainda o Raphinha no Leeds, e tantos outros.

Problema não é falta de jogador.
Se tem drible na Europa, é porque os times lá gerem o espaço de uma forma mais proveitosa que os times daqui.

Logo, a gente tem que discutir o coletivo Afinal, dentro do jogo, o drible jamais acontecerá sem um contexto. Contexto que é físico, técnico, psicológico e tático.
Achar que falta drible, falta magia e não olhar para o coletivo, a gestão de espaço, a tática em si é meio que inútil. As duas coisas se conversam. E acho que ainda há um espaço imenso para racionalizarmos mais um debate que, durante anos, ficou no campo do subjetivo.
Por isso, o debate sobre o resgate da essência do futebol brasileiro, a melhora do jogo aqui precisa passar mais por um lado racional, um lado do "como fazer", e não apenas o lado do que falta e do que tá ruim.
Por exemplo: um filme. Você assiste um filme de aventura e acha chato. Assiste Indiana Jones e acha legal.

Roteiristas, diretores, atores não ficam no “chato ou não”. Eles pensam racionalmente como fazer o filme ser legal.
E pensar racionalmente é pensar em narrativa, em técnicas de storytelling, construção de arcos, desenvolvimento de personagens.

Podemos fazer o mesmo com o futebol.

Pensar racionalmente como aumentar os dribles para melhorar aquilo que entregamos como representação.
Fato é que o drible permanece vivo. No nosso imaginário, no Brasil, na Europa.

Drible que foi decisivo numa vitória do Real Madrid sobre o Barcelona.

E que será sempre decisivo.

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