Os termos "saúde mental" e "burnout" foram alguns dos temas mais pesquisados no Google no ano de 2021. É provável que nunca tenha se falado tanto sobre saúde mental. O problema é que o tema, ainda que fundamental, tem se popularizado de forma despolitizada.
Pra mim, um bom termômetro pra saber se um tema está em alta são os memes. Hoje em dia, em qualquer página de memes, os temas frequentes são "ansiedade", "exaustão", "terapia", etc. Isso mostra que o assunto é urgente e que faz parte do cotidiano das pessoas.
Então temos a seguinte situação: por um lado, há um aspecto positivo, que é a popularização do debate sobre saúde mental. Por outro lado, é um debate totalmente despolitizado, reduzido ainda a "faça terapia", "tome remédio", "busque um diagnóstico".
O tema reflete uma questão que, inegavelmente, é coletiva, social e política. Ainda assim, quando se fala sobre saúde mental, a ênfase é o indivíduo e terapêuticas. Quase toda a centralidade do debate gira em torno da individualização do sofrimento (que é produzido socialmente).
Isso tudo pra dizer que é necessário haver, em paralelo com a popularização do debate, um movimento de politização do sofrimento e das possibilidades de cuidado.
É preciso, por exemplo, que se fale abertamente que o fato da depressão ser hoje a condição de saúde mais incapacidade do mundo, tem a ver com a incessante exploração do trabalho, com uma subjetividade alienada, com a negação de uma vida digna, com opressões diversas, etc.
É preciso dizer, sem medo, que o burnout, antes de ser um problema de saúde, é um problema político. Que o burnout é a expressão mais evidente da hiperexploração do trabalho no contexto neoliberal, e que o enfrentamento do problema não pode ser individual, mas sistêmico.
É preciso dizer que o cuidado individual é indispensável, mas se não houver uma mudança estrutural no nosso modo de vida e de organização social, se não combatermos o machismo, a homofobia, o racismo, etc., vamos ser menos efetivos que enxugadores de gelo.
É preciso dizer que se hoje a classe trabalhadora só tem como possibilidade de assistência a internação em hospitais psiquiátricos e comunidades terapêuticas, isso não se deve porque essas são as melhores alternativas, mas sim, porque não há investimento em serviços públicos.
Nós temos acúmulo científico o suficiente para ofertarmos uma rede substitutiva, aberta, integral, com o que há de melhor na atenção psicossocial — tudo isso bem mais barato e clinicamente eficaz que o modelo asilar. Se os trabalhadores não dispõem disso, a questão é política.
Isso tudo pra dizer que a questão está posta. Não há quem não sinta, no próprio corpo, os efeitos de ter atravessado a maior crise de saúde pública da nossa geração em meio ao pior governo da história. Estamos exaustos psicologicamente e é necessário politizar essa exaustão.
Por isso enfatizo que a saúde mental é uma pauta urgente, necessária, e que precisa ser tratada como uma questão política.
Há ainda um outro aspecto que merece atenção. A politização do sofrimento mental tem ainda um papel tático e estratégico importantíssimo na luta social. Isso porque permite a tomada de consciência e a organização subjetiva de um mal estar social geral.
Ou seja, problematizar porque sofremos e da forma que sofremos, sob uma perspectiva política, pode promover processos de desalienação, de conscientização [sobretudo de classe], de criticidade e ajudar a fomentar o engajamento em uma práxis transformadora.
Tenho ainda a tese de que processos coletivos de cuidado e acolhimento em saúde, como espaços de fala, escuta e reflexão, podem ser instrumentos extremamente potentes em trabalhos de base. Mas sobre isso falo em outro momento.

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5 Dec
Na moral, eu me emociono muito por ter conhecido a psicologia histórico-cultural kkkkkk.

Antes de conhecê-la, eu praticamente me sentia deslocado na psicologia, tanto é que, por esse motivo, me dedicava muito mais a estudar saúde mental e reforma psiquiátrica que "abordagens".
A primeira teoria que me interessei foi psicanálise. Não demorou muito pra saber que não era minha vibe. Cheguei a fazer cursos, iniciação científica, análise e tal, mas, em pouco tempo, não me via mais tendo interesse por ela.
Depois disso me interessei pela abordagem centrada na pessoa. Essa demorei um pouco mais. Li boa parte das obras do Rogers em português e achava que tinha encontrado meu lugar na psicologia. Mas, ainda assim, não me identificava muito com meus pares.
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24 Nov
Um dos maiores desafios atuais no debate sobre saúde mental gira em torno de desnaturalizar a gramática do sofrimento psíquico imposta pela psiquiatria hegemônica.

Sem fatalismo nenhum, precisamos reconhecer que, sobretudo ideologicamente, essa psiquiatria venceu.
E é importante enfatizar o caráter de imposição. O paradigma hegemônico não se estabelece dessa forma por uma questão de mérito científico. Não é porque ele dispõe de melhores categorias teóricas, descritivas e analíticas. É porque esse paradigma foi imposto pela força.
Isso faz com que, por exemplo, todo o debate sobre saúde mental esteja circunscrito a gramática psiquiátrica. Usamos os seus termos, sua métrica, sua racionalidade, seus parâmetros. Qualquer coisa que ouse romper ou criticar essa lógica é entendido como algo absurdo, inconcebível
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23 Nov
Termos comuns na saúde mental que me causam certo ranço:

"Risco a si e a terceiros"
Não to dizendo que não dê pra entender, e claro que quando ouço, a depender do contexto, não faço problematização desnecessária. Mas acho o termo ruim.
Sinto que reforça um pouco o imaginário do "louco perigoso" — e claro, de forma alguma estou negando a complexidade que envolve uma crise. Mas acho que essa expressão tende a individualizar a crise, desconsiderando que há um contexto onde isso ocorre.
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16 Nov
O teste de QI é basicamente uma cloroquina nos estudos da cognição. Poucas pessoas levam a sério isso. O motivo de ainda hoje se falar de QI tem mais a ver com um fetiche na mensuração e quantificação do psiquismo, que por sua vez, serve para moldar sistemas de hierarquização.
Um dos poucos espaços onde ainda se leva a sério esse negócio é na mídia. Mesmo sendo um parâmetro bem impreciso, e, podemos dizer, bem aleatório, ainda hoje se fala bastante sobre QI nos veículos de mídia. E claro, a maior parte do jornalismo ignora plenamente seus problemas.
Óbvio que isso tem uma função: moldar subjetividades que naturalizem a ideia de que alguns indivíduos são "especiais", "superiores", quase que "escolhidos". E essa é a chave mestra do discurso neoliberal: o sujeito ímpar, o empreendedor de si, o sujeito merecedor (meritocracia).
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20 Oct
O biopoder é um regime de controle dos corpos que se vale dos discursos da saúde para a imposição de uma normatividade, de uma "moral do ser saudável". Em resumo, o discurso da "saúde" pode servir muito bem como um regime de controle material e ideológico das pessoas.
Por isso, sempre considero extremamente complicado utilizar o pretexto da "saúde" como justificativa para um padrão de comportamento ou norma. Sob a régua dos discursos do que é ou não saudável, pode estar velado um regime de normatividade.
Vale lembrar que a concepção do que é ou não saudável (corpos saudáveis, hábitos saudáveis) não se dá no vácuo. Cada uma dessas noções são formuladas em determinados contextos sociais, políticos e históricos. O que é considerado saudável hoje, não é o mesmo que uma década atrás.
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