Alguns comentários breves e nada sistematizados sobre a classificação do Burnout como "doença" ocupacional:
Em primeiro lugar caberia uma discussão prévia sobre medicalização, o que não vai ser possível de fazer aqui pela complexidade do tema. Mas, em resumo, a medicalização é um processo de apreensão de determinados fenômenos pelo que se convencionou chamar de "ciências da saúde".
Medicalização não é o mesmo que medicamentalização e nem medicação. A gente pode chamar de medicamentalização uma certa tendência em atribuir o uso de medicamentos a resposta única e prioritária para lidar com o sofrimento humano. Em geral, a medicamentalização implica não só +
A priorização do uso de medicamentos, como também, um uso excessivo destes.
Medicação, por sua vez, é instrumento, uma ferramenta terapeutica que pode ser utilizada no processo de cuidado.
É possível possível medicar sem medicamentalizar. É possível medicalizar sem medicar. Cada um desses termos representam coisas diferentes.
Bom, isso tudo pra dizer que a medicalização em si não é um problema. Ela passa a ser um problema quando se refere ao que chamamos de "medicalização da vida/existência".
Muitas vezes, é importante sim medicalizar, entender determinado fenômeno ou objeto a partir do discurso técnico-científico das ciências da saúde. Isso não é um problema. Se torna um problema quando você passa a capturar e codificar a existência a partir desse discurso.
Bom, daí teria o problema de estabelecer os limites disso, o que nos leva a antiga discussão do "normal" e do "patológico". Isso vai ficar pra depois. Por ora, só quero dizer que medicalizar não é algo ruim em si mesmo.
Muito do que vi sobre a discussão do burnout se configurar como "doença" ocupacional gira em torno disso. Por um lado, se defende que ela não seja considerada uma "doença", mas sintoma do capitalismo (o que é correto).
Por outro, as pessoas defendem que seja sim considerada "doença" ocupacional, pois, em alguma medida, as empresas seriam responsabilizadas — não está errado, embora seja ingênuo pensar que no capitalismo neoliberal, em um contexto de crescente uberização, isso ocorra.
Pra mim o problema começa com o termo "doença". Isso porque há um certo consenso na saúde mental de que o termo "doença mental" carrega consigo um teor negativo e estigmatizante. Então, com exceção das alas mais conservadoras da Psiquiatria, não se usa o termo "doença mental".
Há também o fato do termo "doença" ser uma herança do campo biomédico, que faz pouco sentido no campo transdisciplinar da saúde mental. É como se, ideologicamente, fosse uma forma de demarcar a dominação médica.
Além disso, há um debate epistemológico, que pouco me atrai, mas que afirma que uma doença demanda a existência de um agente etiológico ou causa definida. Isso não existe na saúde mental. Por isso, não faz sentido o termo "doença mental".
Então, em primeiro lugar, se eu puder sugerir algo, peço que tirem do debate o termo doença.
Em segundo lugar, não vejo problema, a priori, que o burnout seja considerado um diagnóstico ocupacional. Na prática, ele já tem sido, e ainda que isso não seja o suficiente pra mudar algo, é importante sim enfatizar que o burnout é um sofrimento determinado pelo trabalho.
Isso vai promover alguma mudança radical? Provavelmente não, até porque a mudança desse cenário é da ordem da política, não da ciência (ainda que não dê pra separar as duas coisas). Não é como se as empresas fossem optar por explorar menos os trabalhadores com essa mudança.
Isso simplesmente não vai rolar. As empresas vão continuar explorando os trabalhadores até a última gota. Quando ele tiver lascado, se não houver vínculo trabalhista, será descartado e pronto. Se for CLT, talvez receba uns dias de atestado. Nada mais que isso.
Ou seja, se há a ilusão de que essa nova classificação traga ganhos pra classe trabalhadora, podem esquecer. A exploração capitalista não está nem aí pro que a saúde diz (lembram da Pandemia, né? Então...).
Dito isso, por questão de precisão mesmo, considero importante a classificação. Não porque isso trará alguma mudança no mundo do trabalho, mas para que se dê uma boa definição ao problema.
É certo que o burnout é um sintoma do capitalismo, mas essa é uma definição geral e abstrata demais, e não dá conta de tratar de forma concreta o problema. É um sintoma do capitalismo? Sem dúvida, mas é um problema de saúde também (embora não seja "doença").
Além disso, é plenamente possível lidar com a questão enquanto problema político, mas, também, de saúde. Dizer que não é importante o diagnóstico ou a classificação, porque isso despolitiza a questão, pode ter algo de verdadeiro, mas apenas aparentemente.
Ou seja, burnout é uma expressão da opressão e exploração da classe trabalhadora? Sem dúvida que sim, mas que guarda suas particularidades. Afinal, todos nós somos explorados e oprimidos, mas nem todos desenvolvem um quadro de sofrimento desse tipo.
Isso tudo pra dizer que é possível tratar o burnout como sofrimento ocupacional sem despolitizá-lo. Acho que a classificação é importante, e é um quadro que merece a atenção dos profissionais da saúde, mas que não pode ser desvinculado da realidade social.

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16 Dec
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Não é fatalismo, é uma constatação. A luta antimanicomial, embora historicamente vinculada ao campo da esquerda, tem sido completamente ignorada nos últimos anos.
Por exemplo, embora a lei da reforma psiquiátrica brasileira tenha sido proposta pelo Paulo Delgado, do PT, foi também nos governos petistas que os primeiros desmontes ocorreram.
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15 Dec
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13 Dec
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Dá uma maneirada no Netflix aí fi, não vem querer pintar liberal de Hanibal não...
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10 Dec
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5 Dec
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24 Nov
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