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Jan 25 32 tweets 5 min read
E morreu Olavo de Carvalho. Talvez não tenha havido, no Brasil recente, nenhuma personalidade do mundo da cultura mais influente politicamente que ele. O resultado dessa influência está aí: radicalismo ideológico, polarização e degradação do debate público.

Sigam o longo fio.
Por ocasião da data, gostaria de falar da minha própria experiência com o olavismo e que talvez ajude a entender a influência e o impacto que o Olavo teve nessa geração.
Conheci o Olavo nos idos de 2007, por meio de um texto famoso na época: A tragédia do estudante sério no Brasil. O texto tinha muitos elementos que mexiam com um jovem universitário: Olavo nos tratava como intelectuais em potencial e como vítimas de circunstâncias alheias a nós.
Além disso, despejava uma multidão de autores que nunca tínhamos ouvido falar, o que, além de despertar a curiosidade, sugeria a ideia de que 1) nossos professores eram ignorantes (e o Olavo era luz); 2) havia um complô para nos impedir o acesso a essas fontes de conhecimento
Estávamos, na época, no segundo mandato do Lula, e o clima de antipetismo já estava instaurado, apesar dos índices de aprovação do presidente. O Mensalão havia minado parte da credibilidade moral do governo.
2008, por exemplo, foi o auge do blog do Reinaldo Azevedo e o ano em que foi publicado o "País dos Petralhas". Nesse caldo político, Olavo fazia a associação entre crise da cultura e degradação política, associando o estado geral de ignorância ao projeto de poder da esquerda.
Mas noto que, ainda que a parte política fosse um estímulo adicional, Olavo arregimentava seguidores principalmente a partir de um jogo de vaidades juvenis: jovens, de inteligência moderada e algum interesse intelectual, eram atraídos para um vórtice de ideias e autores.
Ideias e autores que, como já disse, nunca tínhamos ouvido falar. O impacto, pelo menos em mim, foi tremendo: "seu professor nunca lhe falou deste filósofo? O maior do século XX?".
E Olavo era, sobretudo, um grande escritor (coisa que até os críticos admitem). E aqui, também, havia um texto clássico: Aprendendo a escrever. Se vocês lerem os dois em conjunto, verão mais ou menos o mesmo modus operandi: name dropping, críticas a professores e intelectuais etc
No fundo, muitos de nós queríamos conhecer aqueles autores, escrever tão bem quanto o Olavo, e principalmente, ter a autoconfiança e o estudo necessários para fazer o que Olavo falava que qualquer aluno seu faria com 3 anos de estudos (depois aumentou para 5, depois para 10):
"Acabar com qualquer professor da USP num debate". Notem que isso não faz nem sentido (o que significa acabar com alguém num debate?), mas era o suficiente para mexer com o orgulho e a petulância de jovens.
Esse sentimento era potencializado pela comunidade no Orkut do Olavo. Ali se reuniam "alunos e admiradores" do "Professor Olavo" ao redor do Brasil. Gente com interesses comuns e que, de algum modo, reforçavam nos outros o mesmo sentimento de querer se tornar um estudante sério.
Olavo percebeu as demandas dessa comunidade e lançou o Curso de Filosofia. Lembro bem - e já tuitei sobre isso - que aquele parecia um momento histórico. No ano (acho que em 2009), alunos mais engajados trocavam materiais de aula, apostilas velhas, áudios de cursos antigos.
Tudo isso reforçava ainda mais a lenda e o mito de que Olavo era um gigante do pensamento, escondido e que agora teríamos acesso a uma vastidão de conhecimento.
Mas observem (e aqui está o pulo do gato): o público era formado, majoritariamente, por pessoas com baixa formação (jovens ou adultos que não tinham formação acadêmica). Mas como eu, e essa gente, podia avaliar a qualidade do Olavo, dos autores que ele citava, de suas ideias?
A resposta: não podia. O que fez a fama do Olavo nunca foi o valor de suas ideias, mas antes a combinação de barafunda de autores desconhecidos, o sentimento de comunidade, o clima de seita e a ideia de que estávamos resistindo a alguma ameaça (política, cultural, intelectual).
E esse era um traço marcante do Olavo: a discussão quase sempre se dava num plano meta-intelectual. Olavo falava da crise da cultura, dos problemas da inteligência brasileira etc. mas raramente discutia as próprias ideias ou as ideias de alguém.
No curso, por exemplo, poucas aulas eram dedicadas a analisar um argumento filosófico, e a esmagadora maioria era destinada a "desmascarar" erros dos outros. Façam o teste: perguntem aos seguidores quantas ideias originais (e mesmo sem ser originais) do Olavo ele consegue listar
Os que conhecem um pouco mais a obra do Olavo vão mencionar coisas como teoria dos quatro discursos (um livro academicamente fraco); a ideia de "conhecimento por presença" (totalmente desarticulada e desconexa) +
O intuicionismo radical (que ele nunca desenvolveu e na prática era utilizada para justificar suas ideias retiradas de lugar nenhum), a teoria do império do Jardim das Aflições (historicamente impreciso), o seu conceito de verdade (que nenhum autor de epistemologia aceitaria)
Mas havia, é claro, uma justificativa para não discutir ideias: é porque, filosoficamente, o que interessava eram as "experiências dos filósofos" e não suas ideias. O que isso significava na prática? Que o trabalho de lê-los e interpretá-los não era relevante.
Um dos exercícios que o Olavo sugeria - a leitura lenta (uma frase por dia) de um autor (ele sugeria Louis Lavelle) - dava um exemplo: você lia uma frase e ficava refletindo (hummm, que experiência será que ele teve antes de escrever isso?).
Não tinha isso de ler o livro todo, de situá-lo no contexto dos debates da época, na história de investigações da disciplina (Olavo falava de status quaestionis, mas ficava por isso). O negócio era ter a "experiência" (isso está presente nas críticas do Olavo ao Descartes).
No fundo, sob o ponto de vista metodológico, Olavo fornecia as ferramentas para que alguém pouco letrado em filosofia falasse as maiores asneiras do mundo com a confiança de um especialista. Essa arrogância intelectual foi a grande marca que ele deixou nos seus alunos.
E é por isso que tanta gente fala que teve a vida transformada pelo Olavo: pouca gente relata que aprendeu algo, mas muitas que "se transformaram em algo". E no que se transformaram?
O legado é a autoconfiança injetada em jovens e adultos de baixa formação e leitura, mas que se sentiam metodologicamente validados em sua própria ignorância. A filosofia do Olavo dava ferramentas para ignorantes se acharem inteligentes e julgarem os demais burros e estúpidos.
Essa autoconfiança, essa violência - que no início era apenas intelectual - encontrou terreno fértil no bolsonarismo. E é aqui que os caminhos se cruzam: as ferramentas que o "ignorante intelectual" recebeu eram também ferramentas de radicalismo político.
Olavo dizia que estava formando uma "nova geração de intelectuais" mas, no fundo, estava formando uma nova geração de militantes. Isso se percebia pelos cacoetes introjetados nos alunos, pela constante emulação que muitos faziam até dos jeitos do Olavo.
O que essa geração "formada" pelo Olavo buscava não era estudo e conhecimento, mas sim validação e, de certa forma, poder: poder para se afirmar em relação a amigos e professores e, no limite, poder para se afirmar em relação aos esquerdistas.
Esquerdistas que, note-se, eram inimigos não só pelas ideias, mas porque ocuparam o lugar na cultura que deveria ser do Olavo. Por que razão deveria ser dele? Perguntem hoje para os alunos que escrevem seus elogios. A resposta será: "porque o Olavo falou".
Saí disso, para nunca mais voltar, há dez anos. Quando vejo hoje jovens relatando a profunda transformação operada pelo Olavo lembro dos meus tempos e nutro a esperança de que, assim como eu, eles também possam perceber o que percebi: que não havia nada ali.
Vou aproveitar o sucesso pro auto-jabá: me sigam lá no Instagram — Instagram.com/horacioneiva 🤣

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Jan 24
Vi hoje no Instagram um post com "dicas para escolher um Ministro do STF". Uma delas seria escolher um Ministro que "cultue a tradição constitucional brasileira e não estrangeirismos". Há tanto um ponto certo quanto um excesso de ingenuidade (e desconhecimento) nessa "dica".
O ponto certo é que, sim, um excesso de estrangeirismo não é bom. O errado é que muitos desses estrangeirismos foram incorporados nessa mesma tradição e, portanto, fazem parte dela.
O próprio autor da postagem não percebe que temas como "auto-contenção" foram importados no debate constitucional brasileiro que, além do mais, é avesso a metodologias mais "conservadoras" que são, vejam só, importadas de juristas americanos.
Read 4 tweets
Jun 1, 2021
Hoje tomei uma decisão importante e contratei um profissional para me ajudar a deixar minhas redes sociais um pouquinho mais organizadas. Já comecei a postar algumas coisas no Instagram, e meu site deve sair em breve (aliás, se quiserem seguir: instagram.com/horacioneiva) +
Confesso que estava um pouco saturado de internet e resolvi, fora meus trabalhos formais, produzir conteúdo que acho legal e possa ser relevante. A experiência de ver alguns seguidores daqui no meu curso sobre o Notion ajudou +
Sei que esse negócio mais “profissional “ fica parecendo meio forçado, artificial ou padronizado. Mas vou tentar escrever e postar sobre coisas que gosto e com material que acho que possa ser bacana de compartilhar +
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Jun 1, 2021
A Nise Yamaguchi é um bom símbolo da intelectualidade de direito dos últimos anos no Brasil. Desde sua origem remota no olavismo, a direito propagandeou que pensadores e pessoas inteligentíssimas eram boicotadas apenas por serem de direito. O resultado está aí.
Ainda hoje alguns conservadores que tentam esconder suas ligações com a origem desses movimentos vendem a imagem do "outsider", da crítica à academia e da existência de uma sabedoria profunda, escondida e ignorada pelo mainstream progressista.
Olavo já espalhava isso quando dizia que "qualquer aluno meu, com três anos de estudo sério, destrói um professora da USP". Os anos se passaram, conservadores se dispersaram, e onde está esse bálsamo de conhecimento?
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Jun 1, 2021
É muito engraçado como falar de vinhos envolve, sobretudo, um domínio da linguagem. A grande dificuldade é conseguir transmitir, por meio das palavras, uma expressão sensorial, não-linguística e subjetiva.
O problema é quase filosófico: há elementos objetivos, com seus descritores adequados (como acidez, corpo etc.), mas há uma percepção íntima, subjetiva, que nós não conseguimos muito bem transmitir.
Para isso, rola toda tipo de liberdade literária, como descrever um vinho como "elétrico", com "tensão" ou até mesmo "elegante" (que, embora pareça menos literário, não deixa de ser bastante subjetivo).
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Feb 20, 2021
Um elemento essencial de qualquer sistema de notas ou fichamentos é que todas as anotações devem estar disponíveis para busca com base em seu conteúdo. Em outras palavras: elas devem ser pesquisáveis (searchable). É por isso que tomas notas no Word ou no GDocs não funciona.
Mesmo que você consiga pesquisar no conteúdo de um arquivo em Word ou GDocs, você só consegue visualizar, na busca, o nome do arquivo, e precisa 1) abrir o arquivo e 2) pesquisar, dentro do documento, a informação que você quer.
Isso torna praticamente impossível visualizar relações entre arquivos. Mesmo que o conteúdo desses documentos seja indexado na busca no Windows ou Mac, ele não é pesquisável.
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Feb 4, 2021
Já era claro para todos que a Lava Jato, enquanto operação e modelo de combate à corrupção, precisava ser revista. Essa revisão deveria envolver, no entanto, a discussão sobre um modelo novo, de instituições mais sólidas, eficazes e, ao mesmo tempo +
menos pessoalizadas ou baseadas na espetacularização de operações de legalidade duvidosa. Se queríamos falar de avanço, esse deveria ter sido ele: um modelo em que a efetividade do combate à corrupção não dependesse de desvios da legalidade praticados por um Juiz superstar.
Mas, ainda assim, a eficácia do combate à corrupção - obviamente, dentro dos limites da legalidade - deveria ser o norte para a discussão desse novo modelo.

Não foi isso o que aconteceu.
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