Reginaldo é recém formado especialista de um dos mais respeitados hospitais de ensino do país.
Não importa a especialidade nem carga horária, Reginaldo esteve em risco de concluir sua Residência Médica ainda como um leigo.
E assim foi: defendeu tratamento precoce para covid.
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A Residência Médica é uma das maneiras pelas quais um médico pode se tornar um especialista.
Sua prova de admissão é um vestibular bastante concorrido e também criticável.
Suas questões são desconexas da realidade e não selecionam bons médicos com raciocínio crítico.
Reginaldo não foi ensinado sobre o que significa a frase “a clínica é soberana”. Pelo contrário, acreditou em memes que via no Instagram que diziam que soberana mesmo é outra especialidade.
Escolheu uma especialidade que “não precisava de clínica”.
Mesmo que escolhesse Clínica Médica, o destino de Reginaldo seria o mesmo: o ensino de uma medicina mecanicista, repleta de dogmas e lendas urbanas.
O ensino na sua instituição se dizia baseada em evidências, mas era mesmo baseada em eminências: o chefe falou, tá falado.
Reginaldo podia até ter tido aulas sobre interpretação de estudos científicos da sua especialidade, mas não teve.
Por achar que sua especialidade é imutável até o aparecimento de um novo estudo, as + 5000 horas dedicadas à sua especialidade não lhe trouxeram inteligência.
Formado, Reginaldo está pronto para consumir qualquer informação que um guru lhe trouxer para o resto da sua vida.
Será em congressos, às vezes patrocinando desde canetinhas até passagens e hospedagens para motivar um novo exame ou remédio, que ele aprenderá.
Reginaldo é apenas mais um médico mecanicista, que acha que sabe Medicina, ou às vezes acha que conhece sua especialidade.
Na verdade, por não conhecer a Medicina Baseada em Evidências ou por achar que “a clínica é soberana” é meme, não sabe sequer interpretar um exame.
E por não conhecer a ignorância (no sentido de desconhecimento) em que está mergulhado, Reginaldo e seus colegas residentes acham que está tudo bem.
A Medicina que temos retroalimenta esse sistema.
Ao formar-se, Reginaldo procurará trabalhar na área que mais dá dinheiro que, quase que invariavelmente, é aquela que mais “gera pacientes”.
“Gerar pacientes” tem nome em Medicina: disease mongering - o ato de “inventar doenças”, algo como os mecânicos fazem com nossos carros.
Mas ele nem sabe que está fazendo isso! É que nos congressos, o conceito de “disease mongering” obviamente não é ensinado - ele, tão leigo quanto seus pacientes, feliz com seus brindes, realmente acha que está fazendo o bem.
Está apenas inventando doenças aos saudáveis.
Reginaldo fez uma ótima pontuação na prova de residência e carrega em seu braço um respeitável brasão, vai a congressos e se atualiza.
Mas é apenas um leigo em Medicina porque não foi ensinado a interpretar corretamente artigos ou sequer os exames da sua própria especialidade.
PS: qualquer um pode ser Reginaldo.
O ensino médico atual é pouco baseado em evidências. O mecanicismo (e os dogmas nele presentes) ainda é o carro chefe do aprendizado.
Qualquer instituição gera Reginaldos.
Tem que partir de nós.
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A síndrome de Wolff-Parkinson-White é um defeito embriológico do coração presente em 1 a cada 1000 nascidos. Neles, ocorreu uma falha quando o órgão ainda se formava na 4a semana de gestação.
Nesse fio eu vou explicar o que isso significa e quais as consequências desse problema.
A primeira coisa que você precisa saber pra entender a síndrome é que ela é um defeito no esqueleto do coração.
Sim, nosso coração possui um esqueleto.
Ele sustenta as valvas e os músculos e também serve como isolante elétrico entre câmaras do coração.
“Nosso coração tem eletricidade?”
Sim! E o caminho por onde essa eletricidade é conduzida é bem estudado por nós eletrofisiologistas.
Quando o estímulo elétrico percorre corretamente esse caminho, nosso coração bate na sequência perfeita: primeiro átrios, depois ventrículos.
Gutierrez é um respeitado médico especialista. Se vangloria da sua capacidade diagnóstica e de suas decisões terapêuticas satisfatórias.
Em 2020, ele achou racional prescrever cloroquina. Em 2021, faz campanha contra a vacinação.
Segue o fio para entender.
No primeiro atendimento do dia, Gutierrez atende um resfriado comum. Com anos de atuação, veio a constatação que muitos pacientes exigem remédios para “justificar a consulta”.
O resfriado é uma doença auto-limitada: todos os pacientes melhorarão um dia ou outro.
Quando o paciente melhora, Gutierrez recebe elogios pela sua receita “diferenciada” -um kit de vitaminas e outras medidas ineficazes.
Gutierrez esquece do poder que a história natural da doença tem nesse caso - se o paciente já iria se curar, como afirmar que ele impactou nisso?
O que as pessoas pensam que é VERSUS o que é de verdade.
O fio:
O que pensam que é:
- Uma disciplina pouco importante em comparação a anatomia e farmacologia.
O que é de verdade:
- A mãe de todas as disciplinas. A anatomia e a farmacologia (e outras básicas) servem como fundamento para a prática médica que se pauta baseada em evidências.
O que pensam que é:
- Uma disciplina chata em que obrigam a decorar fórmulas, índices e leis.
O que é de verdade:
- Uma disciplina em que se ensina a pensar criticamente, a desconfiar de charlatões e conseguir ler e interpretar se um artigo científico deve modificar conduta
Um investidor da Faria Lima descobriu uma doença rara que acomete 1 a cada 10 mil pessoas! A acurácia do exame é 99,9%.
Qual a probabilidade de ter mesmo a doença?
Não fique triste se respondeu 99,9%. A maioria dos médicos também acha. Mas está errado e eu vou te explicar no fio
A interpretação médica de exames é muito mais complexa do que se faz parecer pela Medicina mecanicista tradicional com seu binômio:
Positivo x Negativo.
Na verdade, a interpretação de cada exame individualmente deve ser:
Verdadeiro e falso positivo x verdadeiro e falso negativo.
Essa interpretação entre exames verdadeiros ou falsos em Medicina é um dos pilares da atuação médica (e de profissionais da saúde em geral).
Só que, por incrível que pareça, não é ensinada corretamente pelo currículo médico atual da maioria das universidades brasileiras.
“A incrível história dos exames que, matematicamente, não servem para nada” ou “Sensibilidade e especificidade não são úteis para o médico”.
Você escolhe o nome do filme após ler esse fio aqui.
E espero que entenda o problema que demonstro.
Para entender esse fio, vamos às definições básicas:
- Sensibilidade: probabilidade de um teste ser positivo em quem tem a doença.
- Especificidade: probabilidade de um teste ser negativo em quem não tem a doença.
Leia de novo a definição para perceber um detalhe: é que para usar sensibilidade e especificidade, o médico precisa saber de antemão quem tem e quem não tem a doença.
E nós pedimos exames para DESCOBRIR se alguém tem ou não a doença.
Não entendeu? Veja um exemplo prático.
Isabela é uma mulher de 57 anos com três filhos, planejando sua futura aposentadoria.
Isabella (com dois L) é a mesma pessoa, mas em um universo paralelo.
Ambas possuem uma doença grave, mas só uma delas descobriu esse problema em estágios iniciais.
Segue o fio.
Isabela fez um exame de check-up, o que lhe fez descobrir essa doença ainda em estágios iniciais.
A partir daí, Isabela recebeu todo um planejamento de terapia da doença, que envolvia múltiplas ações interdisciplinares. Sua vida, agora, seria uma luta pela cura.
Essa terapia escolhida tem benefício comprovado na literatura, que é o seguinte: reduz a probabilidade de morrer em 5 anos, de 82 para 10%.
Com um resultado fantástico como esse, quem, em sã consciência, poderia ser contrário?