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Feb 9 22 tweets 5 min read
Você leva o carro a uma revisão e descobre que a pinça do carburador está quebrada.

Fica com aquela pulga atrás da orelha: essa peça existe mesmo?

Médicos ganham a vida inventando doenças que não existem e você acredita. Nesse fio eu disseco essa má prática médica.
O ato de “inventar” doenças é conhecido como “Disease Mongering”. O ato é complexo e orquestrado de maneira quase perfeita para que o leigo e o médico leigo não percebam onde mora o erro.

O charlatão conhece esse processo e se aproveita disso.
Começa pelo apelo óbvio à saúde. É que essa narrativa garante, quase que instantaneamente, um selo de aprovado pela comunidade e pela mídia.

Posicionar-se contra essas práticas é frequentemente confundido pela sociedade com ser contrário à Medicina ou à saúde.
Passa também pela promessa de tratamento de sinais e sintomas “mundanos”:

Quem não quer melhorar seu cansaço excessivo?
Mas, quem não tem cansaço excessivo quando o trabalho exige mais? Quantas vezes você confundiu cansaço com falta de motivação?

Não é à toa essa escolha. Veja:
É que sintomas mundanos assim são normalmente passageiros. O cansaço excessivo melhora quando você entrega seu TCC.

E também são subjetivos: uma boa motivação também pode te dar aquela energia extra pra terminar aquele projeto. O coach e o charlatão sabem disso.
Perceba que nunca se usam desfechos objetivos em terapias assim. Eles nunca prometem que irão reduzir sua probabilidade de morte caso você tenha uma doença grave como infarto e tromboembolismo.

É que motivação não salva um infartado da morte.
Depois, o charlatão usa do desconhecimento do leigo e do médico leigo em entender evidências científicas.

Pra convencer essas pessoas, servem os estudos de baixa força metodológica: in vitro, usando desfechos clinicamente insignificantes e até mesmo fraudando pesquisas.
Outra técnica muito usada é o uso exagerado do “mecanicismo” para convencer leigos e médicos leigos.

É quando se dá uma ótima explicação médica sobre o mecanismo da doença, mas se omitem as consequências clínicas dela. Veremos exemplos adiante.
Como disse, o processo é elaborado: para plantar a dúvida, pra dar um ar de “nós contra eles” e pra puxar a opinião pública para si, o charlatão sabe que precisa dar esses passos antes de vender a sua terapia.
Para inventar uma doença, precisa haver um exame que a defina. E isso pode ocorrer assim:
- Inventar um exame (a mais rentável, porque ele venderá também o exame);
- Usar um exame que já existe mas que não tinha propósito clínico.
- Modificar o propósito de um exame que já existe
Um exemplo de exame que já existe mas não tinha propósito na Medicina é a medida do cromo sérico.

Observe o apelo à saúde e também o mecanicismo envolvido: a deficiência está perfeitamente explicada no post.
Só tem um problema.
É que a deficiência de cromo não foi adequadamente reportada em humanos e nunca se conseguiu demonstrar que todo esse mecanismo realmente causa problemas.

(óbvio que se você der um Google, encontrará artigos, de fraca metodologia, que falam que sim. O charlatão não é bobo).
Um exemplo de exame com propósito modificado é a “fadiga adrenal”. O charlatão pegou a medida de cortisol, exame usado para diagnóstico de uma doença séria chamada “insuficiência adrenal” para inventar uma nova doença.

Observe os sintomas mundanos e subjetivos citados.
Para o tratamento da doença que não existe, o charlatão escolhe a dedo suas terapias, que precisam ter as seguintes características:
- Ser inócuo
- Ter apelo de conhecimento pouco difundido na “Medicina tradicional”
- De preferência deve ter um apelo natureba, holístico, quântico
É que todo mundo já teve um diagnóstico não descoberto por um médico. Todo mundo já se sentiu mal tratado em consulta. Então apelar pra o “nós x eles” funciona fácil.

Apelar para o natureba também é caminho fácil nesse mesmo sentido. A opinião popular adora e compra fácil isso.
Além disso, a população alvo desse tipo de médicos é uma população estudada.

E quanto maior o nível socioeconômico e cultural de uma pessoa, mais elaborada é a sua burrice.

Quantos vizinhos conspiracionistas nós temos, não é?
A terapia precisa ser inócua porque, se não, transformará uma pessoa saudável em um doente. O charlatão não pode correr esse risco.

Assim, não havendo doenças e tratando sintomas subjetivos, ele garante que sua terapia seja ilusoriamente eficaz sempre.
Um dos maiores trunfos dessas práticas é que ela entra no “paradoxo da popularidade”. O leigo e o médico leigo não conhecem essa armadilha e são presas fáceis.

É assim: como a doença não existe e os sintomas tratados são subjetivos e passageiros, uma hora os sintomas passam.
E quando os sintomas passam, o leigo pensa que foi curado e o médico leigo acha que curou. O leigo indicará a terapia a outras pessoas e relatará seu caso nos comentários desse post

O médico leigo cresce inadvertido. O charlatão que treinou o médico leigo passa a ter mais alunos
Quando uma estratégia em saúde PARECE eficaz, ela tem muitas chances de fazer sucesso, ser cada vez mais difundida pela sociedade, e PARECER ser cada vez mais eficaz.

Um médico se livra disso quando deixa de ser leigo e ganha conhecimento para perceber essa espiral.
Mas será que vale a pena deixar de ser leigo? Ora, sendo leigo e inventando doenças, ele:
- Ganha apoio da mídia (é chamado para entrevistas como médico humano e vanguardista)
- Cresce seu consultório
- Fica numa posição confortável em que raramente precisará lidar com doenças
Leigo, para evitar cair nesse conto do vigário, pesquise sobre o que o médico lhe fala em consulta.

Você faria isso caso algum mecânico lhe falasse que precisaria trocar a pinça do carburador do seu carro.

E pare de dar dinheiro que alimenta esse sistema podre.

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Jan 29
Reginaldo é recém formado especialista de um dos mais respeitados hospitais de ensino do país.

Não importa a especialidade nem carga horária, Reginaldo esteve em risco de concluir sua Residência Médica ainda como um leigo.

E assim foi: defendeu tratamento precoce para covid.
🧵
A Residência Médica é uma das maneiras pelas quais um médico pode se tornar um especialista.

Sua prova de admissão é um vestibular bastante concorrido e também criticável.

Suas questões são desconexas da realidade e não selecionam bons médicos com raciocínio crítico.
Reginaldo não foi ensinado sobre o que significa a frase “a clínica é soberana”. Pelo contrário, acreditou em memes que via no Instagram que diziam que soberana mesmo é outra especialidade.

Escolheu uma especialidade que “não precisava de clínica”.
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Jan 25
A síndrome de Wolff-Parkinson-White é um defeito embriológico do coração presente em 1 a cada 1000 nascidos. Neles, ocorreu uma falha quando o órgão ainda se formava na 4a semana de gestação.

Nesse fio eu vou explicar o que isso significa e quais as consequências desse problema.
A primeira coisa que você precisa saber pra entender a síndrome é que ela é um defeito no esqueleto do coração.
Sim, nosso coração possui um esqueleto.
Ele sustenta as valvas e os músculos e também serve como isolante elétrico entre câmaras do coração.
“Nosso coração tem eletricidade?”
Sim! E o caminho por onde essa eletricidade é conduzida é bem estudado por nós eletrofisiologistas.

Quando o estímulo elétrico percorre corretamente esse caminho, nosso coração bate na sequência perfeita: primeiro átrios, depois ventrículos.
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Jan 12
Gutierrez é um respeitado médico especialista. Se vangloria da sua capacidade diagnóstica e de suas decisões terapêuticas satisfatórias.

Em 2020, ele achou racional prescrever cloroquina. Em 2021, faz campanha contra a vacinação.

Segue o fio para entender.
No primeiro atendimento do dia, Gutierrez atende um resfriado comum. Com anos de atuação, veio a constatação que muitos pacientes exigem remédios para “justificar a consulta”.

O resfriado é uma doença auto-limitada: todos os pacientes melhorarão um dia ou outro.
Quando o paciente melhora, Gutierrez recebe elogios pela sua receita “diferenciada” -um kit de vitaminas e outras medidas ineficazes.

Gutierrez esquece do poder que a história natural da doença tem nesse caso - se o paciente já iria se curar, como afirmar que ele impactou nisso?
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Jan 11
Medicina Baseada em Evidências -

O que as pessoas pensam que é VERSUS o que é de verdade.

O fio:
O que pensam que é:
- Uma disciplina pouco importante em comparação a anatomia e farmacologia.

O que é de verdade:
- A mãe de todas as disciplinas. A anatomia e a farmacologia (e outras básicas) servem como fundamento para a prática médica que se pauta baseada em evidências.
O que pensam que é:
- Uma disciplina chata em que obrigam a decorar fórmulas, índices e leis.

O que é de verdade:
- Uma disciplina em que se ensina a pensar criticamente, a desconfiar de charlatões e conseguir ler e interpretar se um artigo científico deve modificar conduta
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Jan 3
Um investidor da Faria Lima descobriu uma doença rara que acomete 1 a cada 10 mil pessoas! A acurácia do exame é 99,9%.
Qual a probabilidade de ter mesmo a doença?

Não fique triste se respondeu 99,9%. A maioria dos médicos também acha. Mas está errado e eu vou te explicar no fio
A interpretação médica de exames é muito mais complexa do que se faz parecer pela Medicina mecanicista tradicional com seu binômio:
Positivo x Negativo.

Na verdade, a interpretação de cada exame individualmente deve ser:
Verdadeiro e falso positivo x verdadeiro e falso negativo.
Essa interpretação entre exames verdadeiros ou falsos em Medicina é um dos pilares da atuação médica (e de profissionais da saúde em geral).
Só que, por incrível que pareça, não é ensinada corretamente pelo currículo médico atual da maioria das universidades brasileiras.
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Dec 30, 2021
“A incrível história dos exames que, matematicamente, não servem para nada” ou “Sensibilidade e especificidade não são úteis para o médico”.

Você escolhe o nome do filme após ler esse fio aqui.
E espero que entenda o problema que demonstro.
Para entender esse fio, vamos às definições básicas:

- Sensibilidade: probabilidade de um teste ser positivo em quem tem a doença.
- Especificidade: probabilidade de um teste ser negativo em quem não tem a doença.
Leia de novo a definição para perceber um detalhe: é que para usar sensibilidade e especificidade, o médico precisa saber de antemão quem tem e quem não tem a doença.
E nós pedimos exames para DESCOBRIR se alguém tem ou não a doença.
Não entendeu? Veja um exemplo prático.
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