1/17 Prontos p/ mais um fio de #causalidade, #vieses e #guerra? Hoje vou contar p/ vocês a história de John Kragh, um cirurgião do exército americano, q ficou conhecido como “O cara do Torniquete”. P/ quem ñ conhece, o torniquete é um dispositivo qualquer utilizado para conter
2/17 hemorragias. Imagine q você teve um corte fundo no antebraço, e está sangrando muito! Um exemplo de torniquete seria amarrar algo acima do cotovelo para conter o fluxo sanguíneo e impedir q você morra por causa da hemorragia. Como esse tipo de episódio ñ é comum no nosso
3/17 dia a dia, ñ é comum vermos torniquetes sendo utilizados. Uma outra razão é q torniquetes ñ são recomendados, só é p/ utilizar em última instância! P q? Pela facilidade com q outros danos possam ocorrer, como necrose e perda do membro. Outras práticas são preferíveis. Certo
4/17 mas e o cara do torniquete? Embora no nosso dia a dia hemorragias sejam incomuns, em cenários de guerra são bastante comuns. Ainda assim, o Kragh se surpreendeu ao chegar em Bagdá e se deparar com os números absurdos de torniquetes sendo utilizados em soldados nas guerras do
5/17 Iraque e Afeganistão. Essas guerras mudaram drasticamente o protocolo de uso de torniquetes, alçando essa prática de “último recurso” p/ o padrão ouro. A parada ficou tão séria q torniquetes começaram a ser pré-fabricados e entregues para soldados antes das missões de modo
6/17 q eles já saíam p/ missões perigosas com os torniquetes no lugar. Ou seja, explodiu uma bomba ou foi atingido e está com hemorragia nas pernas ou braços, é só “apertar” o torniquete. Ele já está lá! De início, foi estimado q entre 2002 e 2012 + de 2mil vidas militares foram
7/17 salvas por causa dos torniquetes, e a chegada de soldados nos hospitais já com os torniquetes virou algo do cotidiano, sem precedentes na história da medicina. E aí vem aquelas evidências anedóticas e demais falácias argumentativas de sempre! Quem tava mal e sobreviveu pensa
8/17 Fui salvo pelo torniquete! Quem ñ usou e sobreviveu ñ pensava “fui salvo por ñ utilizar torniquete”. Na época, ñ existia grandes estudos avaliando o efeito dos torniquetes. Era algo com poucas evidências sobre seu efeito, seja positivo ou negativo. E foi aí q o Kragh viu uma
9/17 oportunidade de realizar um estudo sobre isso. Os resultados do estudo ñ eram bem o q o Kragh esperava (saíram em 2015). Os soldados q chegavam ao hospital já com o torniquete ñ sobreviviam a uma taxa maior q aqueles q ñ recebiam torniquetes. Mas soou uma alerta! Talvez
10/17 quem chegava sem torniquete é porque tinha sofrido um acidente menos severo... Ñ foi o caso. Mesmo ajustando pela severidade do acidente, ñ identificou taxas maiores. Mas existe um outro viés, e o próprio Kragh pensou nisso! Eles só tinham dados dos soldados q sobreviveram
11/17 tempo o suficiente p/ chegar ao hospital. Talvez a importância disso ñ seja óbvia p/ você, mas o diagrama (DAG) abaixo deve ajudar! A severidade da doença é um fator de confusão p/ três hipotéticas associações mostradas nesse diagrama. Uso de torniquete e sobreviver até
12/17 chegar ao hospital, uso de torniquete e sobreviver após internação, e sobreviver até chegar ao hospital e sobreviver após internação. Ou seja, desde o início, Kragh estava sim correto em ajustar por severidade da doença, corrigindo distorções nas associações causadas pelo
13/17 fator de confusão (severidade da doença). O problema é q por apenas coletar dados dos pacientes q chegavam vivos ao hospital, ele tbm (sem saber) estava ajustando pela variável mediadora (Sobreviver até chegar ao hospital), o q na prática remove parte do efeito total do
14/17 torniquete e estima somente a linha tracejada, o efeito causal direto entre uso de torniquete e sobreviver após internação. E esse efeito, talvez, realmente seja zero. Talvez o efeito do torniquete seja justamente aumentar as chances do paciente chegar vivo ao hospital, p/
15/17 q outros recursos possam entrar em ação e salvar o paciente. Infelizmente, apenas com essa amostra enviesada, ñ é possível estimar o efeito causal total do uso do torniquete na sobrevivência pós-internação desses soldados. Embora ñ tenhamos chegado a uma resposta ao fim
16/17 desse fio, imagino q ficou claro o perigo de, mesmo q inconscientemente, realizarmos ajustes de variáveis de forma equivocada. Aqui é um caso de viés de seleção mas q, em vez de distorcer o efeito real, remove parte dele (o efeito indireto). Eu tirei esse exemplo do Livro
17/17 do Porquê do Judea Pearl. Recomendo a leitura! Já a imagem do torniquete tirei do link abaixo.

unasus2.moodle.ufsc.br/pluginfile.php…
PS: Entender de fato esse tipo de análise (análise de caminhos, ajustes por variáveis de confusão, colisão, mediadores, etc) não é trivial. Quem tem interesse recomendo o Livro do Porquê. Quem já tem base estatística, recomendo o Causality do mesmo autor. Dúvidas, só falar aqui😁

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