Vai ser uma thread e vai ser uma thread longa. Se não quiser ler, eu vou entender perfeitamente. Mas eu só posso escrevê-la aqui. Não posso me dar ao luxo de escrever na outra rede social por motivos pessoais. Mas precisava falar.
Li o "Como as Democracias Morrem" no fim de semana. O livro é um pouco anterior ao que estamos passando e sequer cita o Brasil como um dos exemplos de países em risco. Isso talvez permitisse imaginar que nós afundamos muito rápido para que percebessem. Discordo.
O livro traz a prova dos 9 para identificar se nossa democracia está morrendo. De fato, dos quatro itens citados, gabaritamos todos. Sim, nossa democracia está morrendo. Me parece uma conclusão bem óbvia a esta altura. Aí vem as perguntas seguintes: "como?" e "tem salvação?"
Pra mim, o próprio livro nos permite responder a ambas. Como chegamos aqui? Perdendo as duas normas não-escritas da democracia que permitem sua sobrevivência: tolerância mútua e reserva institucional. E este processo começou bem lá atrás. Em 2013, mais precisamente.
Lembra das "Jornadas de Junho"? Lembra como elas começaram como protestos por serviços públicos melhores e a preço justo? Lembra como poucos meses depois elas se tornaram grandes marchas apolíticas contra a corrupção? Pois é, foi ali. Ali começou a morrer a democracia.
Não me entendam mal, corrupção e melhores serviços públicos são bandeiras excelentes. Mas ali os protestos começaram gradualmente a deixar de ser POR algo e passaram a ser exclusivamente CONTRA algo. Contra o governo, majoritariamente. Contra o PT, principalmente.
Se você foi às ruas naquele ano e em 2014, deve ter começado a notar o aumento nos gritos contra partidos - e contra o governo. A ascensão da Lava-Jato potencializou tudo isso, afinal, os principais alvos eram os partidos que estavam no poder. Em 2015, isso já era mais explícito.
Consegue lembrar de como começaram a surgir pedidos para "acabar" com o PT? Com o governo? Com a estrutura política como um todo? No protesto de março de 2015, já havia faixas de "fora Dilma, fora Supremo" e pedidos por intervenções militares. Volto ao livro, portanto.
Tolerância mútua implica você ver quem diverge de você como um adversário político, não como inimigo. O adversário, como num jogo, você quer vencer. O inimigo você quer aniquilar. Se seu adversário vence, você espera o próximo jogo. Se você vence, ele tem o próximo jogo.
Se você vence o inimigo, você o destrói. Tolerância mútua é perceber que a democracia depende de ver o outro como adversário, não inimigo. Em 2014, começamos a ver o outro como inimigo, não mais como adversário. A reeleição de Dilma Rousseff consolidou isso.
Aqui entra o segundo elemento proposto no livro: a reserva institucional. Reserva institucional significa as instituições se autolimitarem no uso de suas prerrogativas. O famoso "não é porque você pode que você deve". Isso é importante para que exista a possibilidade de consenso.
Pense da seguinte maneira: um presidente, se quiser e tiver o apoio de vasta maioria do Congresso, pode governar quase que por decreto com suas medidas provisórias. Por que não o faz? Porque sabe que eventualmente será barrado pelo STF, por exemplo. E isso causa estremecimentos.
A gente jogou nossa reserva institucional pro espaço há muito tempo e eu posso citar vários exemplos disso: a nomeação de Lula como ministro, a aprovação de pautas-bomba pelo Congresso já durante a crise e repetidos episódios de voluntarismo e casuísmo de juízes e promotores.
A gente jogou tanto para o espaço a nossa reserva institucional que duas pessoas que tenham pensado em exemplos para a última frase acima provavelmente pensaram em casos diferentes. Ou seja, morreu nossa tolerância mútua, morreu nossa reserva institucional.
Alguém está lucrando com isso, e nós sabemos quem é. A morte destes dois elementos alimenta a polarização, e a polarização aumenta a morte destes dois elementos. Este círculo vicioso, se bem orquestrado por alguém, rende frutos. Neste caso, a liderança das pesquisas.
Aqui, volto à segunda pergunta: há o que fazer? Não vejo como. O livro cita um exemplo bem-sucedido, pelo menos por enquanto - o da Áustria, em que uma coalizão elegeu Van der Bellen e conseguiu evitar a ascensão da extrema direita. Mas reconhece-se ter sido algo excepcional.
Eu não vejo como isso se repetir aqui por uma questão simples: nós precisaríamos admitir o problema. É a primeira forma de lidar com ele. Mas muitos de nós nos recusamos. Sabe a autocrítica que está sendo cobrada do PT? Ela deveria ser cobrada de todos nós.
Dos partidos que financiaram movimentos que atuaram fortemente na destruição da tolerância. Dos partidos que abusaram de seus poderes congressuais para prejudicar o outro e beneficiar a si e a seus financiadores. De partidos que, num projeto de poder, abusaram do poder que tinham
Do Judiciário e do Ministério Público que, cientes de sua quase onipotência em um modelo institucional falho, abusaram de suas prerrogativas em prol de bandeiras próprias ou de bandeiras que acreditavam cívicas sem pensar nas implicações mais amplas do que faziam.
Da imprensa, que deu espaço a líderes de movimentos que espalham intolerância e perseguem jornalistas como se fossem participantes legítimos do debate. Da imprensa que esqueceu que política não é só macroeconomia , que discursos têm muito poder e da tolerância mútua.
Dos meios de produção que pensaram só no curto prazo e em como maximizar seus lucros e não no longo prazo, quando a democracia liberal que permite sua sobrevivência sucumbir e vocês se depararem com as implicações do autoritarismo e do compadrio.
De quem (e aqui faço minha autocrítica) se percebeu diante de um movimento ao qual não sabia responder e aderiu a pedidos de menos tolerância e menos reserva institucional, piorando o que já era ruim. De quem lutou pelo que achava certo pelos meios errados.
Eu não vejo como a nossa democracia sobreviver porque eu não vejo essas autocríticas acontecerem. Eu não consigo vislumbrar nem a mais tênue chance de metade desses atores listados acima entenderem o peso de suas ações e tentarem corrigí-las. Simplesmente não vejo.
Nossa democracia vai morrer pela incapacidade de todos nós de perceber os próprios erros, identificar e admitir o problema, perceber que a solução depende de uma cooperação jamais vista e abrir mão de parte dos nossos interesses em problema de um bem geral. C'est fini.
Se você leu isso esperando um fim motivacional, desculpe. Não é um grito de guerra, não é um brado de torcida. Não é nem um chamado à razão, pra mim já insuficiente. Nós cavamos a cova da nossa democracia e a estamos enterrando aos poucos. Isso aqui é só minha elegia.
