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Tem rolado uma discussão sobre existe ou não consumo consciente no capitalismo. E, apesar de me "autodeclarar" marxista (já que as autodeclarações tão na moda), eu me afasto um pouco do marxismo nesse ponto.
Por que? Bem, porque eu concebo que os sujeitos, em diferentes classes e grupos sociais, consomem de acordo com padrões morais, fazendo cálculos complexos sobre custo e benefício. E, nesse caso, benefício não pode ser entendido só em termos de "valor de uso" de uma mercadoria.
O consumo tem uma dimensão moral fundamental e que precisa ser estudada. Mas do ponto de vista dos marxistas, creio que isso poderia ser discutido com mais afinco.

Vejam essa anedota:
Esses dias, um aluno me perguntou se, a medida que o casaco de acrílico dele era de Bangladesh, comprado em uma loja de departamento brasileira, ele não estaria financiando a superexploração do trabalho na Ásia meridional. E eu disse que não.
O erro tá no termo "financiar". O consumidor não financia empresas, esse é um erro crasso. O que financia qualquer empreendimento é uma boa dose de capital de giro que, sem ele, não é possível desenvolver qualquer empreendimento.
Dizer que o consumo de uma mercadoria financia uma indústria é um erro que atravessa desde a produção de detergentes para lavar louça até, sei lá, cocaína. O consumidor passa a ser o responsável pelo sucesso (ou fracasso) de um negócio. E aí é complicado...
Complicado porque ignora dois fatores: tempo e poder. O primeiro, é crucial. Ninguém monta um negócio, qualquer que seja, sem ter os meios necessários para isso. Para montar uma barraquinha de limonada você precisa de algum capital de giro.
Então, o financiador precede o consumidor. Não são os mesmos sujeitos.

O segundo é o poder que os diferencia. O primeiro controla capital de giro para permitir um empreendimento disposto a vender para vários consumidores. O outro, é um consumidor só, atomizado.
"Então tá liberado consumir tudo? Dá pra ser socialista de iPhone?"

Bem, aí é que acho que as coisas podem ser mais refinadas. Porque, afinal, as pessoas criam empecilhos morais para o consumo de certas mercadorias.
Por exemplo, se você sabe que o HSBC foi o banco criado durante a Guerra do Ópio, para lavar dinheiro de traficantes ingleses na China do século XIX, talvez você tenha restrições morais sobre deixar o seu dinheiro lá.
Se você sabe que o crescimento da Nike explorou o trabalho de criancinhas indonésias durante os anos 1990, talvez você tenha restrições morais em comprar seus artigos esportivos.
Vejam, o consumo sustentável é uma quimera do capitalismo, isso é fato, mas as pessoas criam questões morais para o consumo, nós não somos só uma linda calculadora disposta a equacionar custo e benefício.
Nós podemos dizer que essas questões morais são problemáticas, claro, elas carregam consigo contradições e trazem elementos de subjetividade que são bastante complexos. Mas não quer dizer que não existam. Reconhecer essa dimensão é importante.
É importante inclusive porque essa moral poderia (e, na minha humilde opinião, deveria) ser cada vez mais politizada. Dizer que não há possibilidades de alterarmos regras e condutas mais amplas por meio do consumo faz com que ignoremos a possibilidade de mobilizar os sujeitos...
...na esfera mais complexa do capitalismo, aquela que é capaz de transformar as "coisas" em pessoas.

É óbvio que não é o seu banho de 15 minutos que fode com o meio-ambiente. Mas você pode muito bem desenvolver uma moralidade acerca do seu consumo pessoal de água.
É a partir dela que podemos refletir porque nos privamos enquanto grandes corporações seguem consumindo os recursos naturais. Nessa lógica, só restam duas saídas: ou eu politizo a minha questão moral e cobro das multinacionais, ou toco o foda-se e passo a tomar banhos de 2 horas.
Por fim, porque esse é um fio de manhã de domingo, levemente procrastinador, deem uma olhada no livro do historiador Marcel Van Der Linden, "Trabalhadores do mundo: ensaios para uma história global".
Nele, tem um capítulo inteiro sobre a história dos protestos referentes ao consumo na história do capitalismo. Boicotes, saques, tabelamentos...há toda uma história de trabalhadores e trabalhadoras tentando ressignificar o consumo.
E, como marxista (aí sim, de volta ao clube), reconhecendo a indivisibilidade entre consumo-distribuição-produção, qualquer ataque organizado que fizermos a um desses pólos acaba gerando tremores e repercussões.
Desde que, é claro, a gente não caia na patota liberal de que a responsabilidade do consumidor é individual e intransferível.
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