A essa altura do campeonato só quem não me conhece tem coragem de me mandar o vídeo do Morgan Freeman. Mas para além do ridículo, tem algo de curioso (e racista) no envio deste video. (continua 👇🏿)
Uma sociedade racista não é necessariamente uma sociedade em estado de guerra. Para além da retórica, a guerra é conflito aberto e com posições de profundo antagonismo. Guerra é desequilíbrio e instabilidade. O racismo funciona quando é possível combinar conflito com estabilidade
Racismo exige controle, estabilidade, capacidade de metabolização e normalização da subjugação do outro. Por isso, é comum que em uma sociedade racista haja espaços para que os racializados falem de si. Isso torna a violência racial algo "normal".
Então é comum que os brancos racistas elejam alguém do grupo racializado, ainda que involuntariamente, para desempenhar o papel de "voz legitimadora da normalidade social". Ou seja, alguém que fale o que eles precisam que seja dito em defesa do sistema.
Neste delírio, o negro que afirma que não há racismo ou nega a consciência negra teria "autoridade" para falar. O negro, nesses casos, não tem autoridade, mas tem "autorização" dos racistas para falar apenas o que eles querem ouvir. Confunde-se autoridade com autorização
A luta antirracista abriu à força seus espaços. A forma de bloquear tais espaços é deslegitimar a fala e a ação dos que denunciam e agem contra o racismo. Nada melhor do que um "negro autorizado" para fazer isso, ainda mais se ele for famoso e respeitado em seu grupo.
Morgam Freeman é perfeito para essa operação. É negro, ator de respeito e estrangeiro. Por isso recebe autorização dos brancos que repetem à exaustão o que ele diz, por mais equivocado que ele esteja.
O aspecto curioso e racista é o fato da escolha de Freeman como porta voz da consciência branca. Por que não ouviram o que Harry Belafonte tem a dizer? E Denzel Washington? Viola Davis? Ao contrário desses, Freeman foi autorizado a se pronunciar sobre este tema por quem manda.
E no Brasil a coisa fica ainda mais nitida. Ninguém perguntou ao ator Lázaro Ramos o que ele acha sobre isso. Claro que não, pois ele não caberia nesse papel. O racismo exige que sobre ele se fale do jeito que ele mesmo quiser.
Os negros e negras que poderiam falar sobre o tema na perspectiva brasileira porque estudam e militam são convenientemente esquecidos. Ou alguém acha que o Freeman pode falar de racismo com mais autoridade que Sueli Carneiro?
Portanto, o branco que envia videos do Freeman falando sobre Consciência Negra não merece consideração. Ou é incauto, racista ou ambos. E se for negro é um desorientado que precisa tomar prumo na vida.
Se quiser me mandar coisas do Freeman aceito Blue-Ray de "Um sonho de liberdade", "Seven" ou "Brubaker". Gosto de vê-lo com autoridade e não como negro autorizado.
