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Em 31 de janeiro de 2020, Luna Nera chegou à @NetflixBrasil. A série italiana se passa nas primeiras décadas dos 1600 e conta a trajetória da jovem Ade, que, acusada de praticar feitiçaria, é perseguida por seus concidadãos e obrigada a fugir da cidade para não ser queimada viva.
A equipe e o elenco são majoritariamente compostos por mulheres!
No Brasil, o debate em torno da caça às bruxas está bastante em voga nas Humanidades graças às recentes traduções das obras da pesquisadora italiana Silvia Federici para o português. Calibã e a Bruxa chegou em 2017 e Mulheres e Caça às Bruxas, em 2019.
Federici defende uma nova compreensão histórica da caça às bruxas, tratando-a como um dos aspectos da ampla transformação econômica, política, social e cultural que abriu caminho para a instituição do capitalismo na Europa na Idade Moderna.
A autora investiga os séculos compreendidos nessa longa transição que moldou uma nova forma de pensamento e de organização na Europa, transformando as relações de trabalho, as formas de posse da terra, entre outros elementos da realidade social.
Ela chama atenção para o fato de que as relações de gênero também foram transformadas no bojo desse processo.
As mulheres foram um dos setores sociais mais afetados pela mudança das condições de vida nesse período. Tornaram-se extremamente vulneráveis ao perder o direito às terras em que antes viviam e o suporte das comunidades tradicionais que as cercavam
Por outro lado, também estiveram na linha de frente da resistência ao empobrecimento e à exclusão social, seja pela participação nas revoltas populares ou através da preservação de saberes e formas de vida tradicionais.
Federici defende que elas eram as principais mantenedoras de uma outra relação com o mundo, centrada na ideia de comunidade. Nesse sentido, representaram um obstáculo à crescente racionalização do mundo que o modo de produção capitalista demandava.
Nesse sentido, a política de terror que se instalou com a caça às bruxas foi uma forma de destruir visões de mundo e comportamentos vigentes até então. Foi um instrumento fundamental para impor um novo código social e ético, útil ao novo cenário econômico que se desenhava.
No caso das mulheres, esse processo designou um novo papel social e um novo modelo de feminilidade: o de boas esposas e mães, subordinadas aos homens e de comportamento dócil e obediente.
Não à toa, esse é o momento por excelência em que surge a ideia de que as mulheres deveriam estar confinadas ao ambiente doméstico, realizando o que Federici chama de “trabalho reprodutivo”, ou seja: as tarefas domésticas e a geração de filhos.
As mulheres foram, portanto, fundamentais para que a mão de obra pudesse sobreviver e se multiplicar, suprindo as demandas do sistema capitalista nascente.
Voltando a Luna Nera, podemos identificar alguns dos elementos descritos por Silvia Federici. O modus operandi da perseguição é bem semelhante ao que a autora descreve em suas obras.
Uma vez acusadas, as ditas bruxas são isoladas. Dissemina-se um enorme terror entre a sociedade, para desencorajar a resistência e fazer com que todos tenham medo de se envolver com essas práticas que antes eram consideradas normais e passaram a ser condenadas.
É muito significativo que, em um dos episódios, os Benandanti (caçadores de bruxas) caracterizem como suspeita qualquer pessoa que fosse vista interagindo com uma mulher acusada de bruxaria.
Inclusive, a comunidade era proibida de ajudar mulheres que pedissem comida, o que indica sua situação de vulnerabilidade.
Outro elemento interessante é que mulheres andando sozinhas eram automaticamente consideradas suspeitas de praticar bruxaria. Podemos perceber aí o ataque à autonomia das mulheres, cada vez mais próximas do confinamento ao ambiente doméstico.
Além disso, a sociabilidade feminina também era atacada. Em um dos artigos de Mulheres e caça às bruxas, Federici diz que as amizades femininas passam a ser depreciadas nesse período.
Se antes era comum encontrar grupos de mulheres circulando pelas aldeias - e até frequentando tavernas juntas! -, agora a amizade feminina ganhava uma conotação ruim.
A personagem Cesaria é um claro exemplo de como a caça às bruxas foi um instrumento fundamental para dividir as mulheres. Sua repulsa às bruxas é tão grande que ela se torna um dos Benandanti, obcecada por extirpar essas mulheres da aldeia.
Na lógica de Federici, se, por um lado, a perseguição isolava as acusadas de bruxaria, por outro, difundia o medo nas demais, inclinando-as a aceitar o novo modelo de feminilidade que se impunha para obter aceitação social.
Embora seja uma história de fantasia, a série é bastante oportuna por mostrar como a caça às bruxas foi um processo violento baseado na demonização de pessoas. Mulheres que sempre fizeram parte de uma determinada comunidade de repente passaram a ser abominadas por ela.
O que Silvia Federici tenta demonstrar em seus trabalhos é como e por que aconteceu essa mudança de postura da sociedade que as rodeava, como as mulheres vieram a ocupar esse lugar social de subordinação que se perpetua até hoje em dia.
Para isso, ela considera indispensável olhar para esse fenômeno não de maneira isolada, mas como parte integrante de uma realidade mais ampla e complexa, que envolve desde a economia até a cultura.

Texto por: Beatriz Favilla
Referências

FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa. São Paulo: Editora Elefante, 2017.
FEDERICI, Silvia. Mulheres e Caça às Bruxas. São Paulo: Boitempo, 2019.
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