1. É lamentável - e sintomática - a miséria intelectual e moral revelada em um texto tão curto. O Presidente da @IFIBrasil revela atraso secular em relação ao estado da arte da ciência econômica. Trata-se de profunda ignorância - como veremos no fio a seguir - e/ou de oportunismo
2. Sobre a associação entre moeda gerando NECESSARIAMENTE inflação; trata-se de resquício bárbaro e imaturo encontrado apenas em alguns livros textos para iniciantes. A exposição do Salto se refere a uma versão barbara da velha Teoria Quantitativa da Moeda (TQM), como veremos.
3. A intuição da TQM, defendida por Salto, remonta, pasmem, ao século XVI, quando a entrada do ouro proveniente do Novo Mundo provocou uma alta de preços na Europa. Esquematicamente, deve muito a David Hume, que em 1752, estabeleceu as bases da teoria em seu ensaio Of Money
4. Para Hume, que escreveu no século XVIII, a variação na quantidade de moeda teria efeito proporcional sobre todos os preços expressos em termos da mesma unidade monetária e não implicaria em nenhum efeito real sobre a economia. Algo reproduzido por Ricardo, em 1817.
5. Porém, mesmo Hume, séculos antes de Salto, já era mais sofisticado e aceitava a existência de efeitos
transitórios sobre os preços e emprego antes que o estado da economia alcance o nível de equilíbrio em consequência de uma variação monetária.
6. Esquematicamente, a TQM bárbara adota por Salto, é estruturada na equação de trocas MV = Py e nas hipóteses de que a velocidade (V) é estável ou previsível e que não há efeito permanente de variações de M sobre y (próximo ao pleno emprego).
7. Ao menos desde 2008, a experiência dos bancos centrais escancarou que os modelos econômicos que adotam algum tipo de TQM estão totalmente descolados da realidade, sendo apenas resquícios de atrofia intelectual causada por algum tipo de conservadorismo psicótico
8. Os bancos centrais aumentaram a oferta de moeda numa escala nunca vista. O FED, por exemplo, aumentou a base monetária em 600% em menos de dez anos. A inflação, além de não explodir, continuou muitíssimo baixa.
9. Apesar da experiência de 2008 ter aposentado definitivamente os resquícios bárbaros, desde o século XIX inúmeros pensadores apontavam para as deficiências da TQM, passando por Marx, Keynes e tantos outros. A quem interessar, síntese do debate: valor.globo.com/eu-e/coluna/ju…
10. Nos anos 1980, inspirados explicitamente na TQM retomada por Friedman, Bancos Centrais no mundo buscaram controlar o volume de agregados monetários em um determinado período visando o controle dos preços.
11. A breve retomada perdeu aplicabilidade devido ao insucesso que Bancos Centrais, como o do Reino Unido, décadas de 70 e 80 e da Alemanha, até 90, tiveram quando adotaram a regra friedmaniana: não foram capazes nem de atingir as metas monetárias, nem de controlar a inflação.
12. A realidade impôs o reconhecimento teórico de que a velocidade de circulação da moeda, ao invés de estável ou mesmo previsível, conforme Friedman é instável, dificultando a intervenção das autoridades monetárias sobre os agregados monetários para o controle de preços.
13. O fracasso das regras friedmanianas, fez com que a ortodoxia incorporasse algumas das críticas heterodoxas. Hoje a teoria sobre a inflação mais aceita na ortodoxia e que dá sustetanção às políticas econômicas são assentadas em alguma "regra de Taylor".
14. Onde, basicamente, a inflação é um fenômeno que pode ser gerado pelo(a):
(i)hiato do produto (produto agregado menos o produto potencial )
(ii) inércia inflacionária,
(iii)expectativas de inflação e
(iv)choques exógenos.
15. Se pelos motivos acima surgirem pressões inflacionárias, a regra atual recomenda q se eleve a tx de juros e, quando a inflação ou as pressões inflacionárias desapareceram, a taxa de juros deve ser reduzida (Taylor, 1993). Não se tenta + controlar qtd de moeda, como acha Salto
16. Resumindo: é amplamente aceito que a quantidade de moeda é criada e flutua endogenamente, ao passo que os Bancos Centrais determinam de forma exógena a taxa de curto prazo. É aí que entramos no segundo ponto abordado, tb, pelo Salto (dívida -> + juros).
17. Para um detalhamento mais didático e acessível sobre as relações entre moeda e inflação em economias domésticas, recomendo este texto: mmtbrasil.com/expandir-os-ga…
18. Antes de avançarmos, é bom lembrar q atualmente todo financiamento se dá, incialmente, pela criação de moeda por parte do Banco Central (passivo não monetário transformado em passivo monetário). Ex-post, este gasto culminará em uma combinação de tributos + variação da dívida.
19. Sobre o financiamento via dívida, que Salto associa a maior juros (sem definir muito bem os mecanismos), sugiro q ele olhe dados. Atualmente, o financiamento do combate à pandemia se dá por dívidas gigantescas. E oq aconteceu com a taxa de juros e o custo da dívida? Vejamos.
20. A taxa básica de juros (fixada, cobrada e paga pelo Banco Central nas reservas bancárias), é a mais baixa da história. Mesmo com a maior e mais rápida elevação do déficit primário e da relação dívida/PIB já vista. Mas e o custo da dívida, como anda?
21. Já o custo da dívida também anda despencando - e pasmem - acompanha a SELIC! E quem determina a Selic de forma exógena? O Banco Central!
22. Enfim, o raciocínio do Salto é bárbaro, anticientífico e leva a conclusões erradas sobre as possibilidades fiscais do Estado no combate a uma das maiores crises humanitárias que esse país já viveu. Resumir todo o debate fiscal ao corte de gastos é o terraplanismo que mata.

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More from @deccache

7 Oct
Vocês percebem a funcionalidade do teto de gastos para os mais ricos mesmo se a gente partir de uma lógica econômica convencional ?
2. Quem aceita a necessidade e urgência do ajuste fiscal tem dois caminhos programáticos e não excludentes: cortes de gastos ou elevação de receitas (maior carga tributária).
3. Do lado da elevação da carga tributária, não há espaço politicamente aceitável para majoração de tributos indiretos, pois já temos uma das maiores cargas tributárias no mundo incidindo sobre bens e serviços, ou seja, incidente sobre as nossas grandes pobrezas.
Read 8 tweets
5 Oct
Obviamente, redes sociais, como o Facebook, possuem o poder de direcionar países inteiros para determinada estrutura política e ideológica. Eles não moldam apenas os hábitos de consumo das pessoas, mas, também, a visão de mundo. 1/16
E este direcionamento, obviamente, visa a atender os objetivos privados dos que detêm o controle dessas redes. Proprietários que, também, possuem o controle de boa parte da riqueza global.
2/16
Isso talvez não seja uma grande novidade, há muito temos jornais, rádios, TVs, controlados por ricos e poderosos. Contudo, agora, a tríade poder-dinheiro-ideologia, ganhou traços exponenciais e quase incontroláveis.
3/16
Read 16 tweets
1 Oct
Um dos milhares de motivos da macroeconomia ser diferente de uma economia doméstica é esse: se uma família está com endividamento recorde, o custo da sua dívida tende a explodir (risco alto). Já o governo federal não. Neste momento, aliás, acontece o exato oposto. Vejam no fio.
Ao passo que temos déficit primário totalizando R$ 611,3 bilhões em 12 meses (quase o que a reforma da previdência pretendia economizar em 10 anos para o Brasil não quebrar - risos), o custo da dívida tá despencando...
E o resultado nominal do setor público já tá quase no R$ 1 trilhão.... alcançou R$ 933,5 bilhões em 12 meses, equivalente a 13% do PIB. Com dívida bruta em 88,8% do PIB. Lembro que diziam que com 80% o país quebrava - risos.
Read 7 tweets
30 Sep
1. É importantíssimo dialogar com a população sobre de onde realmente veio o auxílio emergencial de 600 reais, bem como a cota dupla para mães solos que, agora, o Bolsonaro quer cortar pela metade. Segue o fio.

psol50.org.br/renda-basica-e…
2. No dia 26 de março, a Câmara dos Deputados aprovou a Renda Básica emergencial para trabalhadores vulneráveis durante a pandemia do novo coronavírus.
3. A proposta aprovada foi derivada, entre outras propostas da oposição, de uma projeto de lei que o PSOL elaborou semanas antes. Tratou-se, naquele momento, de uma importante derrota do governo Bolsonaro, que queria inicialmente pagar apenas R$ 200 para alguns poucas pessoas
Read 16 tweets
28 Sep
Bolsonaro anunciou hoje que vai cometer crime de responsabilidade fiscal e executar uma pedalada grosseira. O que o mercado disse a respeito? Nada. Pois é por um motivo nobre: manter o teto. Veja os artigos da (péssima) LRF que estão sendo atropelados:
Art. 16. A criação, expansão ou aperfeiçoamento de ação governamental que acarrete aumento da despesa será acompanhado de:
I – estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva entrar em vigor e nos dois subseqüentes;
Art. 17. Considera-se obrigatória de caráter continuado a despesa corrente derivada de lei, medida provisória ou ato administrativo normativo que fixem para o ente a obrigação legal de sua execução por um período superior a dois exercícios.
Read 6 tweets
27 Sep
1. Sobre reforma administrativa atual, é importante lembrarmos dos benefícios que os militares de alta patente conquistaram na reestruturação de carreira que tiveram no ano passado, apesar das anomalias fiscais no setor. Eles estão fora da reforma atual. Vamos aos fatos.
2. Segundo o Tribunal de Contas da União (TCU), em 2016, 88% dos militares foram para a inatividade entre 45 e 54 anos. Mais da metade dos militares foram para a reserva com menos de 49 anos de idade.
3. Os militares representam hoje metade dos gastos da Previdência entre o funcionalismo público, embora representem apenas 31% do quadro.
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