Não importa o que disseram o Ministro e o Presidente,

O tal estudo com Nitazoxamida/Annita foi NEGATIVO (não se comprovou eficácia do medicamento contra COVID-19).

Segue o fio que explico:
- “Responda apenas o que foi perguntado”.

O estudo tem um objetivo primário (e foi pra isso que foi desenhado) - saber se Annita resolve os sintomas de tosse, febre e fadiga em comparação ao placebo em 5 d.

E esse resultado foi similar entre os grupos, sendo portanto, negativo
Já o PCR foi estatisticamente mais negativo no grupo Annita.
O que significa isso?

Resposta: não muita coisa. Porque: uma pessoa pode ter PCR negativo e mesmo assim ter COVID-19 (lembrando que 30% das pessoas com COVID têm PCR falso-negativos - sensibilidade 70%).
Não custa lembrar que, até hoje, fim de outubro, ainda não sabemos qual a real taxa de acurácia dos testes do PCR.

E que a análise dos seus resultados devem ser inseridos em um raciocínio bayesiano, como sugere essa Perspectiva da New England:

nejm.org/doi/pdf/10.105…
Só para ser mais enfático:

UMA PESSOA PODE TER COVID E TER PCR NEGATIVO (no caso, um resultado falso).

A negativação do PCR, portanto, não tem valor clínico nenhum.
Um desfecho como esse é chamado de “desfecho substituto” - desfechos que, no fundo, não significam nada. São apenas sinais de algo.

Podem ser usados para conferir resultados preliminares (quando honestos) ou ludibirar (quando usados para fins políticos).
Exemplo de desfecho substituto:

- Um novo anti-diabético oral é testado em um trial e consegue reduzir os valores da hemoglobina glicada versus placebo.

Pra um leitor iniciante, parece boa notícia. O leitor mais atento, contudo, exigirá: “mas e quanto aos desfechos clínicos?”
Ninguém vive melhor só porque tem hemoglobina glicada mais baixa. Ou porque o PCR foi negativo.

Uma pessoa vive melhor porque teve menos pé diabético, ou menor chance de precisar de hemodiálise. Ou, no caso do COVID, porque teve menor chance de morrer (como a dexametasona faz).
Mesmo que fosse relevante, existe um “porém” na avaliação de desfechos secundários: como o estudo não foi desenhado pra interpretá-los, o mínimo que devemos fazer é vê-los com desconfiança. E pra isso usamos a Correção de Bonferroni.

Valor de p/número de desfechos secundários.
0,05/12 (há 12 desfechos secundários citados nos resultados da tabela 3) dá um p = 0,004. O tal p dito como positivo foi de 0,006, portanto > 0,004.

Isso significa chance inaceitável de acaso.

Nenhum desfecho secundário teve p < 0,004.
Para finalizar, volto ao básico: os resultados de um artigo devem ser analisados à luz da probabilidade pré-teste (inferência bayesiana). A probabilidade pré-teste de um vermífugo funcionar contra COVID é baixa. Mesmo que o estudo fosse positivo, só aumentaria a probabilidade.
A conclusão “Annita reduziu sintomas 1 semana depois” também tem problemas:

- Foi um desfecho “inventado” pelos trialistas - alta chance de manipulação.
- Cai na inferência bayesiana: probabilidade pré-teste baixa e um p limítrofe: alta chance de viés.
A falta de transparência em não publicar o protocolo do estudo no clinicaltrials.gov ANTES da realização da pesquisa também pegou mal.

Essa é uma maneira de ser transparente quanto aos seus resultados.
Há ainda preocupações sobre:

- Análise realizada foi per-protocol (a preferência é pela intention-to-treat);
- Cegamento possivelmente inadequado, visto que 5,6% dos usuários de Annita reportaram urina de cor diferente;

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24 Oct
Médicos se formam sem nunca ouvir falar de pensamento Bayesiano. Os mesmos médicos graduam-se pensando que “sensibilidade” e “especificidade” de testes ou achados são suficientes para elaborar suas hipóteses.

Para ilustrar o problema gerado, trago o paciente Xandy.
Segue o fio.
Xandy é um homem de 38 anos e procurou o pronto atendimento por dor torácica que piorava à movimentação e à palpação de um ponto bem localizado.
O médico do pronto atendimento decidiu fazer uma TC de tórax “apenas para descartar coisas graves”.

O laudo: tromboembolismo pulmonar.
Neste momento, o médico recorda que a angioTC de tórax tem 90% de sensibilidade e 92% de especificidade para o diagnóstico de TEP.

E conclui: há 8% de chance de falsos positivos.

“8% é pouco. Posso confiar. Vou tratar."
Read 22 tweets
21 Oct
Se eu puder dar um só conselho aos meus colegas médicos, o conselho é:

PAREM DE SE BASEAR APENAS NO SUPRA DE ST PARA DAR DIAGNÓSTICO DE INFARTO COM SUPRA.

Ué, como assim? Vem comigo no fio mais importante da semana. 🧵
Camada 1 do problema: você precisa saber que a oclusão coronária aguda (OCA) é um evento dinâmico e sua análise também é dinâmica. Quem nos ensinou isso foram Birnbaum e Sclarovsky, que elaboraram os graus que levam seu nome.
O primeiro grau de isquemia de Birnbaum-Sclarovsky é o da onda T hiperaguda (ampla, simétrica e de base larga, como na figura).

Uns pacientes podem ter infarto apenas com onda T hiperaguda. Outros podem evoluir para os graus 2 e 3, e demonstrarem o supra clássico.
Read 11 tweets
21 Oct
Quer saber quais as mudanças do ACLS e no PALS 2020?

ACLS: nada.
PALS: uma mudança importante.

Vamos enfatizar o que parece funcionar no atendimento a pacientes em parada cardiorrespiratória e a importância do treinamento em ACLS e PALS.
O que definitivamente funciona no ACLS?

- Abordagem sistemática (ABC);
- Desfibrilação precoce.
- Compressões eficazes com mínimas interrupções;

O que é importante fazer?

- Buscar e corrigir as causas secundárias da parada
No PALS, houve sim mudanças importantes:

- Para ventilações de resgate em crianças com parada respiratória e para ventilações por via aérea avançada em parada cardiorrespiratória, a taxa de ventilações é 1 a cada 2 a 3 s (antes a cada 3 a 5 s e a cada 6 s, respectivamente).
Read 10 tweets
20 Oct
Aproveitando que amanhã (21/10/2020), será lançada a Diretriz 2020 da American Heart Association sobre Ressuscitação Cardiopulmonar (RCP), ou, para os mais íntimos, o ACLS 2020, convido-os a contemplar “a desconhecida do Sena” e um pouco da história do ACLS.

🧵💙
Uma jovem senhorita havia se mudado do interior para Paris no final do século XIX. A lenda diz que ela se apaixonou, mas não fora correspondida.

Foi encontrada morta, boiando nas águas do rio Sena, com um sorriso sereno e enigmático.
O enigma da história de vida e da causa da morte da “desconhecida do Sena” permanece até hoje. Mas, seu rosto é conhecido mundialmente, e garanto que meus colegas profissionais da saúde a conhecem.

A desconhecida do Sena é o rosto da Resusci Anne, o manequim de simulação médica.
Read 10 tweets
16 Oct
A interpretação de resultados de testes em Medicina é muito mais complexa que o vigente sistema de “exame positivo = presença de doença”.

- Muitas vezes o exame testa algo indireto sobre doença, não a doença em si;
- Testes podem ser falsos.

Vejamos o caso da Dona Rosa. 🧵
Certa manhã, Dona Rosa assistiu na televisão um “importante médico” falando sobre um teste de screening. Como ela se encaixava no perfil citado pelo médico, decidiu fazer o teste.

E foi positivo. O teste tem 97% de sensibilidade e 64,5% de especificidade.
Definições:
Sensibilidade é a capacidade de detectar resultados positivos entre quem tem alteração.
Especificidade é a capacidade de detectar resultados negativos entre quem não tem.

Dona Rosa tem alteração ou não? Perceba, ela estava em casa assistindo TV.
Read 18 tweets
12 Oct
O mundo é bayesiano, a Medicina é bayesiana.

Desde os conceitos de “sensibilidade e especificidade” até a análise do valor de p em pesquisas. Todos são interpretados de maneira determinista pela maioria.

Não somos ensinados a seguir o raciocínio bayesiano. Segue mais esse fio.
Ainda na graduação, somos introduzidos aos conceitos de “sensibilidade” e “especificidade”.

- Sensibilidade: capacidade de um teste de dar verdadeiros positivos entre os doentes.
- Especificidade: capacidade de um teste de dar verdadeiros negativos entre quem não tem a doença.
Imagine uma doença com 70% de sensibilidade (30% de falsos negativos entre quem tem a doença).

Se uma pessoa faz o teste e ele é negativo, existe 30% de chance de ser falso?

Resposta: NÃO. Perceba que troquei a palavra “doente” por “pessoa”. É aí que mora o bayesianismo.
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