Desde os conceitos de “sensibilidade e especificidade” até a análise do valor de p em pesquisas. Todos são interpretados de maneira determinista pela maioria.
Não somos ensinados a seguir o raciocínio bayesiano. Segue mais esse fio.
Ainda na graduação, somos introduzidos aos conceitos de “sensibilidade” e “especificidade”.
- Sensibilidade: capacidade de um teste de dar verdadeiros positivos entre os doentes.
- Especificidade: capacidade de um teste de dar verdadeiros negativos entre quem não tem a doença.
Imagine uma doença com 70% de sensibilidade (30% de falsos negativos entre quem tem a doença).
Se uma pessoa faz o teste e ele é negativo, existe 30% de chance de ser falso?
Resposta: NÃO. Perceba que troquei a palavra “doente” por “pessoa”. É aí que mora o bayesianismo.
Na vida real, quando um médico solicita um exame, ele solicita porque não sabe quem é sadio e quem é doente. Na frente dele, está uma pessoa.
Talvez o primeiro médico bayesiano, William Osler, já dizia: “não pergunte que doença a pessoa tem, mas que pessoa tem a doença”.
Imagine que lhe pedem pra escolher um número de 1 a 6, e logo em seguida jogam um dado pra cima.
Sua chance de acertar o número é de (100/6) = 16,6%.
Você sabe quais suas chances porque conhece a condição do jogo: o dado tem seis faces.
Agora imagine que te pedem para pegar um número entre 1 e 100. Quais as chances de ganhar? Depende, qual a regra?
- Se a regra for: ganha se escolher um número par, então 50%.
- Ou: ganha se escolher 5 ou seus múltiplos, então 20%.
- Ou ainda: ganha se escolher 46, então 1%.
A regra do jogo era desconhecida no exemplo do teste com 70% de sensibilidade. A regra do jogo é conhecer a prevalência da doença.
É aqui que entra o bayesianismo.
É aqui que o dogmatismo impede muitos médicos de avançar. Osler: “quanto maior a ignorância, maior o dogmatismo”
Veja na vida real o que ocorre com um teste com 70% de sensibilidade de 70% de especificidade. Mas agora inserindo a prevalência da doença, exemplificada como 5% nessa doença hipotética.
Qual a chance de um verdadeiro positivo em alguém positivo?
Agora sabemos a regra do jogo.
Viu só como muda a interpretação quando pensamos em pessoas e deixamos de pensar em doentes?
Outra maneira de interpretar um exame é a partir da sua probabilidade pré-teste, e aí se usa o conceito de razão de verossimilhança. Mais uma vez: conhecendo as regras do jogo.
O raciocínio clínico que vem da interpretação subjetiva (e por isso fortemente humana) da probabilidade pré-teste de uma doença é o que nos difere de máquinas.
Máquinas seguiriam guidelines. Seres humanos entendem que a “Medicina é a arte da probabilidade”, como disse Osler.
É exatamente a interseção mais bela entre ciência e humanismo em Medicina, porque une achados de estudos prévios com a experiência e capacidade de raciocínio que é única de cada médico.
É a ciência que permite que se individualizem testes e tratamentos.
Você, estudante de Medicina ou você, médico, esqueça dogmas. Esqueça bizus e orelhadas. Duvide de tudo o que você lê, inclusive duvide de tudo que eu mesmo (que te aconselho aqui) escrevo.
E acostume-se: o mundo é Bayesiano. A Medicina é bayesiana. Não há pra onde correr.
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A Aspirina não reduz em 100% a mortalidade do Infarto. Na Medicina, não existe medicamento assim.
No ISIS-2, a Aspirina reduziu a mortalidade de 11.8% a 9.4%.
Você é médico, analisou exames hoje e não se perguntou “será que eles são verdadeiros”?
Ou é paciente, e acredita em todo e qualquer exame que recebe?
Então, vamos ver o que ocorre no caso da Dona Joana, paciente hipotética mas com um caso muito rotineiro: ela desmaiou.
Dona Joana é diabética e controla bem com um remédio. Começou a se sentir mal no salão de beleza (náuseas, suor frio, até mesmo vomitou) e desmaiou em seguida. Acordou no hospital, com todas suas funções preservadas.
No hospital, lhe pediram vários exames, entre eles troponina.
A troponina é um exame que tem poder de desencadear uma cascata de eventos que culmina no implante do stent.
Na investigação da síncope, a troponina tem papel limitado, porque pode confundir os menos experientes. Também é limitado o USG de carótidas (assunto pra outra thread).
Flutter atrial. Um fato e quatro mitos (o último é surpreendente)
É uma arritmia em que uma frente de onda se perpetua pelo átrio direito a uma velocidade de 300 rpm.
O nó AV não aceita isso, deixando passar 1 a cada 2 ondas.
Fato: arritmias de 150 bpm tem que pensar em flutter
Mito 1: se o ritmo for irregular, não pode ser flutter, tem que ser FA.
O flutter pode ser irregular. Para que isso ocorra, basta que o nó AV aceite irregularmente essas tais frentes de onda: às vezes 1 a cada 2, outras vezes 1 a cada 3…
É exatamente o que ocorre nesse ECG:
Mito 2: Se houver alguma linha isoelétrica (reta) entre os batimentos, é taquicardia atrial e não flutter.
Primeiro que flutter é uma taquicardia atrial. Segundo que são ESPERADAS linhas isoelétricas nas precordiais.
Observe o dente de serra em D2/D3/aVF, mas linhas retas em V1.
Jeff Holter (1914-1983) se alistou na 2ª Guerra como médico do Escritório da Marinha Americana. Estudando eletroencefalogramas, acabou criando o Holter que você conhece, mas que era bem diferente naquela época.
Hoje, contamos com os Smart Watches. Segue o fio 🧵
O primeiro ECG ambulatorial da história veio da incapacidade de Holter de capturar ondas eletroencefalográficas, pelo intenso ruído. Holter mudou o local dos eletrodos para o tórax e conseguiu capturar a atividade elétrica cardíaca.
O primeiro Holter (foto de 1947) tinha 38 kg.
O Holter clássico dura 1-2 dias. Patches e loopers podem monitorizar o eletrocardiograma por até 30 dias. O monitor de eventos implantável (ILR, como o Lux, da foto, que tem 4,5 cm de comprimento e bateria estimada de 3 anos).
Em 1966 a Inglaterra ganhava a sua única Copa do Mundo. Batman e Star Trek estreavam na televisão. Na França, as pessoas ainda iam à guilhotina (a última foi em 1977)
Na França foi descrito um temido ritmo cardíaco. Dessertenne deu-lhe um nome em seu idioma: Torsades de Pointes.
Dessertenne descreveu esse ritmo em uma senhora de 80 anos em seu artigo “La tachycardie ventriculaire à deux foyers opposes variables” na Arch Mal Coeur.
O traçado desse artigo está em meu livro, no capítulo “Arritmias Ventriculares”.
Ao bater o martelo sobre o nome, Dessertenne usou um dicionário* que acabara de ganhar como presente da sua esposa.
Lá, ele viu três definições para “Torsades”.
* Livro que os antigos usavam para saber o significado e a ortografia de palavras.
Continuando a série de posts sobre as influências do Sistema Nervoso Autônomo (SNA, aquele que funciona sem nosso comando) no coração, agora vem fio sobre:
As manobras vagais - por que existem e qual o jeito correto de “enganar” o SNA pra quebrar o circuito de uma arritmia? 🧵
A maioria das arritmias supraventriculares (TPSV) depende do nó AV para perpetuação do seu circuito. O nó AV é ricamente inervado por fibras do SNA (tanto simpático, que acelera sua ativação e aumenta frequência cardíaca; quanto parassimpático, que faz o inverso).
Como não comandamos o SNA, não podemos fechar o olho e pensar “nó AV, fique mais lento”, como fazemos quando queremos mexer nossa perna. Não. Eu, no máximo, posso enganar o SNA para que ele receba mais estímulos parassimpáticos, o que reduziria frequência e quebraria a arritmia.