Médicos se formam sem nunca ouvir falar de pensamento Bayesiano. Os mesmos médicos graduam-se pensando que “sensibilidade” e “especificidade” de testes ou achados são suficientes para elaborar suas hipóteses.
Para ilustrar o problema gerado, trago o paciente Xandy.
Segue o fio.
Xandy é um homem de 38 anos e procurou o pronto atendimento por dor torácica que piorava à movimentação e à palpação de um ponto bem localizado.
O médico do pronto atendimento decidiu fazer uma TC de tórax “apenas para descartar coisas graves”.
O laudo: tromboembolismo pulmonar.
Neste momento, o médico recorda que a angioTC de tórax tem 90% de sensibilidade e 92% de especificidade para o diagnóstico de TEP.
E conclui: há 8% de chance de falsos positivos.
“8% é pouco. Posso confiar. Vou tratar."
O médico concluiu isso porque:
ESPECIFICIDADE é a capacidade um teste ter resultados negativos entre quem não tem a doença. Quanto menos específico um teste, mais resultados falsos-positivos.
Leia de novo a definição de “especificidade”.
“Capacidade de ter resultado negativo ENTRE QUEM NÃO TEM A DOENÇA”.
Você sabe se Xandy tem ou não a doença? O médico sabe? Alguém sabe?
Pois é. Falta uma informação. Quem vai nos ajudar? Ele mesmo, Thomas Bayes.
O raciocínio Bayesiano é, comprovado pelo tweet anterior, a melhor maneira de interpretar qualquer exame em Medicina. Simplesmente porque “sensibilidade” e “especificidade” partem de uma informação que você não tem: quem é que tem a doença?
E como se faz isso?
Todo paciente deve ser analisado clinicamente (a clínica é soberana e se você não entendeu isso, volte 06 casas): suas queixas, seus sinais e seu passado médico e social. A partir dessas informações, o médico deve elaborar a hipótese diagnóstica.
Os testes vêm depois disso.
O TEP, por exemplo, tem um score que estima a probabilidade pré-teste (a maioria das doenças não têm um score e o médico precisa somar e subtrair sinais e sintomas para elaborar a sua própria estimativa).
O Score de Wells do Xandy foi de 0: baixa probabilidade pré-teste: 3%.
Agora o que eu tenho? A seguinte pergunta:
- Qual a probabilidade da angioTC de tórax (Sen: 90%, Esp: 92%) do Xandy ser verdadeira, visto que ele tem 3% de chance de ser TEP?
Senhoras e senhores: a razão de verossimilhança (RV).
A sensibilidade e a especificidade de um teste não devem ser usadas sozinhas na prática clínica. A RV é a ferramenta a ser usada quando você tem as informações:
- Sensibilidade
- Especificidade
- Probabilidade pré-teste do paciente.
O cálculo da RV é esse:
Se o teste for positivo, use RV +. Se for negativo, use RV -.
A RV + da AngioTC para TEP é 11,25.
Depois, vamos ao cálculo da probabilidade pós-teste.
Outra maneira de conseguir calcular isso é usando o nomograma de Fagan
O nomograma aponta a probabilidade pós-teste de Xandy ter TEP, tendo angioTC positiva: 26%.
Perceba que usando mais ferramentas (aquelas que deveríamos ter aprendido a usar), passamos de 8% de probabilidade de falso positivo para 74% de probabilidade.
E aí? Ainda achando que não deve aprender raciocínio Bayesiano?
Para mim isso nem é questão de debate.
Você só nunca havia percebido, mas o mundo é assim: para interpretar um dado, nosso cérebro sempre busca conhecimentos prévios similares ou análogos.
Em Medicina, no decorrer dos anos, esquecemos de fazer isso.
Médicos solicitam baterias de exames sem conversar com pacientes.
Uma das belezas do pensamento Bayesiano é que ele se retro-alimenta:
Agora eu tenho um homem de 38 anos com 26% de chance de ter TEP. Eu preciso investigar mais.
Com o próximo teste, eu repetirei os cálculos, mas já partirei de 26% de probabilidade pré-teste.
O médico que raciocina criticamente tem menor chance de cair em eventuais vieses cognitivos:
- Viés de ancoragem: quando nos ancoramos a uma informação e negligenciamos novos fatos.
Como o teorema se retroalimenta, é mais fácil se desprender da âncora.
- Viés de disponibilidade: a tendência a super-estimar a probabilidade de eventos com maior disponibilidade na memória (porque ocorreram muitas vezes ou recentemente).
O teorema força o médico a revisitar seu raciocínio o tempo inteiro.
- Efeito Dunning-Kruger: a tendência de indivíduos menos experientes de super-estimarem sua própria habilidade.
O teorema força o médico a sistematizar o raciocínio, ajudando-o a perceber seus erros. Quanto mais aprende, mais o médico percebe que precisa estudar.
- Falácia da probabilidade de base: a tendência a ignorar informações estatísticas já existentes e focar apenas nas informações de um caso.
O teorema força o médico a usar de probabilidade pré-teste para elaborar seu diagnóstico final.
Para que você não precise fazer todos esses cálculos, existem diversos sites na internet que podem ajudar. Meu preferido é o:
Por fim, realizamos um d-dímero em Xandy (Sen: 97%, Esp: 40%, RV+1,6, RV- 0,08). Sendo negativo, a probabilidade pós-teste da doença caiu de novo para 2,6%.
Um radiologista mais experiente examinou a primeira imagem e definiu se tratar de artefato de movimento.
Alta para Xandy.
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Imagine que você apostará as suas economias em uma moeda que será jogada para cima. Você sabe que sua chance é 50%.
Você apostaria se alguém te dissesse, antes do jogo, que a moeda está enviesada para um dos lados?
Troque “economias” por “remédios na pandemia”. E segue o fio.
A inclusão da condição “a moeda está enviesada e eu não sei para qual lado” mudou completamente minha chance no jogo da moeda.
A inclusão da simples pergunta “o artigo científico com qualquer medicamento bizarro para COVID-19 tem vieses?” também muda completamente o jogo.
A análise bayesiana dos artigos científicos é bem ilustrada por John Ioannidis em um dos seus papers mais famosos, em que ele afirma “ser possível provar matematicamente que a maioria das pesquisas são falsas”.
A primeira crítica é a quem interpreta artigos baseado apenas em p.
Não importa o que disseram o Ministro e o Presidente,
O tal estudo com Nitazoxamida/Annita foi NEGATIVO (não se comprovou eficácia do medicamento contra COVID-19).
Segue o fio que explico:
- “Responda apenas o que foi perguntado”.
O estudo tem um objetivo primário (e foi pra isso que foi desenhado) - saber se Annita resolve os sintomas de tosse, febre e fadiga em comparação ao placebo em 5 d.
E esse resultado foi similar entre os grupos, sendo portanto, negativo
Já o PCR foi estatisticamente mais negativo no grupo Annita.
O que significa isso?
Resposta: não muita coisa. Porque: uma pessoa pode ter PCR negativo e mesmo assim ter COVID-19 (lembrando que 30% das pessoas com COVID têm PCR falso-negativos - sensibilidade 70%).
Se eu puder dar um só conselho aos meus colegas médicos, o conselho é:
PAREM DE SE BASEAR APENAS NO SUPRA DE ST PARA DAR DIAGNÓSTICO DE INFARTO COM SUPRA.
Ué, como assim? Vem comigo no fio mais importante da semana. 🧵
Camada 1 do problema: você precisa saber que a oclusão coronária aguda (OCA) é um evento dinâmico e sua análise também é dinâmica. Quem nos ensinou isso foram Birnbaum e Sclarovsky, que elaboraram os graus que levam seu nome.
O primeiro grau de isquemia de Birnbaum-Sclarovsky é o da onda T hiperaguda (ampla, simétrica e de base larga, como na figura).
Uns pacientes podem ter infarto apenas com onda T hiperaguda. Outros podem evoluir para os graus 2 e 3, e demonstrarem o supra clássico.
- Buscar e corrigir as causas secundárias da parada
No PALS, houve sim mudanças importantes:
- Para ventilações de resgate em crianças com parada respiratória e para ventilações por via aérea avançada em parada cardiorrespiratória, a taxa de ventilações é 1 a cada 2 a 3 s (antes a cada 3 a 5 s e a cada 6 s, respectivamente).
Aproveitando que amanhã (21/10/2020), será lançada a Diretriz 2020 da American Heart Association sobre Ressuscitação Cardiopulmonar (RCP), ou, para os mais íntimos, o ACLS 2020, convido-os a contemplar “a desconhecida do Sena” e um pouco da história do ACLS.
🧵💙
Uma jovem senhorita havia se mudado do interior para Paris no final do século XIX. A lenda diz que ela se apaixonou, mas não fora correspondida.
Foi encontrada morta, boiando nas águas do rio Sena, com um sorriso sereno e enigmático.
O enigma da história de vida e da causa da morte da “desconhecida do Sena” permanece até hoje. Mas, seu rosto é conhecido mundialmente, e garanto que meus colegas profissionais da saúde a conhecem.
A desconhecida do Sena é o rosto da Resusci Anne, o manequim de simulação médica.
A interpretação de resultados de testes em Medicina é muito mais complexa que o vigente sistema de “exame positivo = presença de doença”.
- Muitas vezes o exame testa algo indireto sobre doença, não a doença em si;
- Testes podem ser falsos.
Vejamos o caso da Dona Rosa. 🧵
Certa manhã, Dona Rosa assistiu na televisão um “importante médico” falando sobre um teste de screening. Como ela se encaixava no perfil citado pelo médico, decidiu fazer o teste.
E foi positivo. O teste tem 97% de sensibilidade e 64,5% de especificidade.
Definições:
Sensibilidade é a capacidade de detectar resultados positivos entre quem tem alteração.
Especificidade é a capacidade de detectar resultados negativos entre quem não tem.
Dona Rosa tem alteração ou não? Perceba, ela estava em casa assistindo TV.