A interpretação de resultados de testes em Medicina é muito mais complexa que o vigente sistema de “exame positivo = presença de doença”.

- Muitas vezes o exame testa algo indireto sobre doença, não a doença em si;
- Testes podem ser falsos.

Vejamos o caso da Dona Rosa. 🧵
Certa manhã, Dona Rosa assistiu na televisão um “importante médico” falando sobre um teste de screening. Como ela se encaixava no perfil citado pelo médico, decidiu fazer o teste.

E foi positivo. O teste tem 97% de sensibilidade e 64,5% de especificidade.
Definições:
Sensibilidade é a capacidade de detectar resultados positivos entre quem tem alteração.
Especificidade é a capacidade de detectar resultados negativos entre quem não tem.

Dona Rosa tem alteração ou não? Perceba, ela estava em casa assistindo TV.
Se Dona Rosa tiver a alteração, a chance de seu resultado ser verdadeiro é 97%. Se ela não tiver, a chance do seu resultado ser falso positivo é de 35,5%.

Perceba que a dúvida “se a dona Rosa tiver a alteração” ainda está presente mesmo depois do teste.
Como o médico faz agora?
A chave pra essa resposta está na probabilidade pré-teste da dona Rosa ter a doença. Como ela é assintomática (lembre que só fez o exame porque viu na TV), o único dado que podemos usar é a prevalência da doença na população (quantas pessoas estão AGORA com a doença).
Perceba que, pelo simples fato de se questionar “o teste é verdadeiro ou falso?”, o médico chega a uma conclusão de que há 97,4% de chance de estar diante de um resultado falso.

(Abro parênteses para a dica: SEMPRE pergunte ao seu médico a chance do seu teste ser verdadeiro).
O médico normalmente sai das graduações de Medicina com a ideia de que “sensibilidade” e “especificidade” são suficientes para que interprete o resultado de um teste. Muitos sequer ouviram falar no Teorema de Bayes (esse que apliquei de maneira indireta no vídeo).
Já o paciente, acostumado a anos de consultas com médicos que nunca levantaram essa hipótese, e também a programas de TV muito didáticos e pouco realistas que acabam por disseminar a ideia de “quanto mais testes melhor”, acaba virando agente ativo na geração de falsos resultados.
Dona Rosa lidou muito mal com o resultado positivo, o que gerou fortes desavenças familiares. Além disso, o procedimento confirmatório que esse teste gerou (com menos chance de falsos positivos) era invasivo e lhe causou dor e saída de secreção pela ferida, que infectou.
A ansiedade gerada pela possível doença, e a vontade de sobreviver, além da sensação de que o médico está fazendo tudo por ela…

Dona Rosa, em momento algum, culpa o teste falso pelas adversidades que tem passado.

O viés do gato de Schrodinger beneficia o sobre-tratamento.
Ainda há mais uma camada importante e difícil de ser discutida: o teste positivo não significa presença de doença ou que o aquela irá levar à morte.

Por exemplo, ter coronavírus presente na orofaringe não significa que você tem COVID. Significa que há vírus em sua orofaringe.
É um conceito difícil de ser compreendido: os testes, muitas vezes, avaliam indiretamente a doença.

É óbvio que ter o vírus na orofaringe significa enorme chance de esse vírus ter “entrado em seu corpo”. Mas não necessariamente.
Da mesma forma, podemos imaginar que essa doença que dona Rosa pesquisa, mesmo sendo de alta gravidade, se verdadeira, poderia jamais levar a problemas, porque não “vingaria”.

Talvez sejam necessários outros testes pra identificar em quem a doença vai vingar ou não.
A beleza do raciocínio clínico Bayesiano está no fato de que ele está o tempo todo se retro-alimentando.

Se a probabilidade pré-teste da dona Rosa ter a doença era de 1% antes do primeiro exame, depois dele, ficou em 2,6%.

O próximo cálculo já partiria desse valor.
Esse método de raciocínio clínico é extremamente importante nas seguintes situações:

- Meses coloridos;
- Médicos que pedem baterias de exames logo na primeira consulta.

Porque o único dado conhecido será a prevalência da doença, como foi no exemplo da dona Rosa e o exame da TV
Mas também é importante em casos clínicos sintomáticos. O mesmo raciocínio pode ser aplicado se alguém tem dor torácica:

- A chance de infarto cresce;
- A de apendicite aguda diminui.

Para avaliação de sinais e sintomas como probabilidade pré-teste, farei outro post no futuro.
Finalizo:

- Médico, vá além da sensibilidade e especificidade. Aprenda sobre valor preditivo e razão de verossimilhança. Esses conceitos JUNTOS é que definem a chance de um teste ser verdadeiro.
- Paciente, pergunte ao seu médico qual a chance de seus exames serem verdadeiros.
PS:

* Tive que apagar o primeiro post porque continha um erro conceitual e o twitter não permite edições.
* Peço desculpas a quem já tinha curtido e retweetado.

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12 Oct
O mundo é bayesiano, a Medicina é bayesiana.

Desde os conceitos de “sensibilidade e especificidade” até a análise do valor de p em pesquisas. Todos são interpretados de maneira determinista pela maioria.

Não somos ensinados a seguir o raciocínio bayesiano. Segue mais esse fio.
Ainda na graduação, somos introduzidos aos conceitos de “sensibilidade” e “especificidade”.

- Sensibilidade: capacidade de um teste de dar verdadeiros positivos entre os doentes.
- Especificidade: capacidade de um teste de dar verdadeiros negativos entre quem não tem a doença.
Imagine uma doença com 70% de sensibilidade (30% de falsos negativos entre quem tem a doença).

Se uma pessoa faz o teste e ele é negativo, existe 30% de chance de ser falso?

Resposta: NÃO. Perceba que troquei a palavra “doente” por “pessoa”. É aí que mora o bayesianismo.
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11 Oct
NNT da Aspirina para evitar uma morte no cenário de Infarto Agudo do Miocárdio é de 42 pelo ISIS-2 trial.

O que significa isso?
O que posso concluir sobre isso?
Quais os vieses disso?

Fio sobre o NNT. Fio sobre choque de realidade🧵
NNT de 42 significa que 1 a cada 42 pacientes infartando com supra que receberam AAS no ISIS-2 trial foram salvos pela ação exclusiva do AAS.

Os outros 41:
a) Morrem mesmo assim
b) Sobrevivem porque já iriam
c) Sobrevivem por outros fatores

Imagem: @LuisCLCorreia
O que significa “morrer mesmo assim”?

A Aspirina não reduz em 100% a mortalidade do Infarto. Na Medicina, não existe medicamento assim.
No ISIS-2, a Aspirina reduziu a mortalidade de 11.8% a 9.4%.
Read 13 tweets
5 Oct
Você é médico, analisou exames hoje e não se perguntou “será que eles são verdadeiros”?

Ou é paciente, e acredita em todo e qualquer exame que recebe?

Então, vamos ver o que ocorre no caso da Dona Joana, paciente hipotética mas com um caso muito rotineiro: ela desmaiou.
Dona Joana é diabética e controla bem com um remédio. Começou a se sentir mal no salão de beleza (náuseas, suor frio, até mesmo vomitou) e desmaiou em seguida. Acordou no hospital, com todas suas funções preservadas.

No hospital, lhe pediram vários exames, entre eles troponina.
A troponina é um exame que tem poder de desencadear uma cascata de eventos que culmina no implante do stent.

Na investigação da síncope, a troponina tem papel limitado, porque pode confundir os menos experientes. Também é limitado o USG de carótidas (assunto pra outra thread).
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26 Sep
Flutter atrial. Um fato e quatro mitos (o último é surpreendente)

É uma arritmia em que uma frente de onda se perpetua pelo átrio direito a uma velocidade de 300 rpm.
O nó AV não aceita isso, deixando passar 1 a cada 2 ondas.

Fato: arritmias de 150 bpm tem que pensar em flutter
Mito 1: se o ritmo for irregular, não pode ser flutter, tem que ser FA.

O flutter pode ser irregular. Para que isso ocorra, basta que o nó AV aceite irregularmente essas tais frentes de onda: às vezes 1 a cada 2, outras vezes 1 a cada 3…
É exatamente o que ocorre nesse ECG: Image
Mito 2: Se houver alguma linha isoelétrica (reta) entre os batimentos, é taquicardia atrial e não flutter.

Primeiro que flutter é uma taquicardia atrial. Segundo que são ESPERADAS linhas isoelétricas nas precordiais.
Observe o dente de serra em D2/D3/aVF, mas linhas retas em V1. Image
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20 Sep
Jeff Holter (1914-1983) se alistou na 2ª Guerra como médico do Escritório da Marinha Americana. Estudando eletroencefalogramas, acabou criando o Holter que você conhece, mas que era bem diferente naquela época.

Hoje, contamos com os Smart Watches. Segue o fio 🧵 Image
O primeiro ECG ambulatorial da história veio da incapacidade de Holter de capturar ondas eletroencefalográficas, pelo intenso ruído. Holter mudou o local dos eletrodos para o tórax e conseguiu capturar a atividade elétrica cardíaca.

O primeiro Holter (foto de 1947) tinha 38 kg.
O Holter clássico dura 1-2 dias. Patches e loopers podem monitorizar o eletrocardiograma por até 30 dias. O monitor de eventos implantável (ILR, como o Lux, da foto, que tem 4,5 cm de comprimento e bateria estimada de 3 anos).

A pequena cirurgia pra implante dura segundos. Image
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17 Sep
Em 1966 a Inglaterra ganhava a sua única Copa do Mundo. Batman e Star Trek estreavam na televisão. Na França, as pessoas ainda iam à guilhotina (a última foi em 1977)

Na França foi descrito um temido ritmo cardíaco. Dessertenne deu-lhe um nome em seu idioma: Torsades de Pointes.
Dessertenne descreveu esse ritmo em uma senhora de 80 anos em seu artigo “La tachycardie ventriculaire à deux foyers opposes variables” na Arch Mal Coeur.

O traçado desse artigo está em meu livro, no capítulo “Arritmias Ventriculares”. Image
Ao bater o martelo sobre o nome, Dessertenne usou um dicionário* que acabara de ganhar como presente da sua esposa.
Lá, ele viu três definições para “Torsades”.

* Livro que os antigos usavam para saber o significado e a ortografia de palavras.
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