O GP de Tripoli de 1939 marcou um desafio para a Mercedes-Benz: fazer um carro em oito meses, esse foi o W165. Ele foi feito por causa das mudanças inesperadas de regulamento na Federação Italiana. Conto a história desse carro e desse GP nessa thread:
Em 1938, os alemães dominavam as corridas Grand Prix, que na época tinha o regulamento de 3 litros. Os carros eram o Mercedes-Benz W154 e a Auto Union Type D. Mas a Federação Italiana anunciou algo que pretendia mudar isso, ao menos em terras italiana
Todas as grandes provas italianas seriam pelo regulamento Voiturette, ele previa que os carros teriam que ter motor de 1.5 litros, a partir de 1939. Não era segredo que a AIACR (atual FIA) queria mudar para esse regulamento a partir de 1940, mas foi uma surpresa inesperada
E existia um motivo para a mudança, os alemães não tinham carros nesse regulamento, enquanto Alfa Romeo e Maserati tinham. Isso daria uma boa vantagem e obrigaria a Mercedes e Auto Union a desenvolver um carro apenas para as corridas italianas, o que levaria um bom tempo
Esse anuncio aconteceu no GP da Itália de 1938. Alfred Neubauer, chefe de equipe da Mercedes, disse que o presidente da federação italiana anunciou as mudanças com um "doce sorriso". Mas a Mercedes era bem poderosa e trataria aquela situação como um desafio
Já a Auto Union, era menor, ela dependia mais do dinheiro governamental do que a Mercedes e não tinha a estrutura para desenvolver um carro Grand Prix rapidamente. Além do mais, muitos dos esforços dentro da fábrica estavam focados em fabricações para o exercito alemão
Em 14 de Setembro de 1938, a cúpula Mercedes emitiu uma ordem para se construir três carros dentro do regulamento Voiturette, esses carros deviam estar prontos para correr no GP de Tripoli de 1939, que aconteceria no dia 7 de Maio. Ou seja, teriam 235 dias para o desenvolvimento
Tripoli é a capital da Líbia até hoje, na época era um território italiano, governado pelo Marechal Balbo. O GP de Tropoli, apesar de nunca ter feito parte do Campeonato Europeu, era uma das corridas mais prestigiadas da época.
Quando se aproximou da prova, começou a chegar telegramas da Mercedes para a inscrição de dois carros em Tripoli, o que gerou certa surpresa no inicio, a marca tinha conseguido produzir os carros nesse tempo? A resposta é não!
A Mercedes tinha conseguido produzir um carro até aquele momento, e ainda faltava testar em Hockenheim. Esse carro seria usado por Rudolf Caracciola. Um segundo carro que seria usado por Hermann Lang, só seria montando no navio a caminho da prova.
Na lista de inscritos, eram 30 carros. 2 Mercedes, 6 Alfa Romeo e 22 Maserati. Os seis carros da Alfa Romeo eram do modelo que seria campeão da F1 em 1950 e 1951, o Alfa Romeo 158 "Alfetta", os da Maserati se dividiam entre 18 modelo 6CM, 1 4CM e três dos novíssimos 4CL
Um desses 4CL era um curioso carro com carroceria streamliner. Uma coisa que Auto Union e Mercedes tinham usados uma vez, em AVUS, no ano de 1937. Porém esses eram carros de recorde de velocidade, não eram recomendados para corridas.
Mesmo assim, na qualificação esse carro conseguiu o tempo de 3:41.80 ao comando de Luigi Villoresi, superando os pilotos da Mercedes: Caracciola com 3:42.35 e Lang com 3:43.13. Os carros da Mercedes tinham diferença, o carro de Caracciola tinha uma maior aceleração.
Porém aquele final de semana não estava sendo nada fácil para a Mercedes. Caracciola e Lang sentiam que a equipe a estava dando preferência para o outro. A situação era tão delicada, que em uma sessão de treinos, Neubauer mandou Lang testar a pista, que estava bem quente.
Lang daria de 3 a 4 voltas para se qualificar melhor, isso também ajudaria a desgastar seus pneus, com isso o comportamento do pneu seria melhor em corrida, eles teriam menor risco de superaquecem no inicio. O problema é que a Mercedes já tinha desistido de treinar naquela sessão
Devido a fragilidade do motor novo, que não tinha sido testado corretamente. Isso levou a ira de Caracciola, naquele momento, Lang estava bem atrás dele, ele acusou Neubauer de estar tentando colocar Lang em sua frente, ficou tão revoltado que deixou o circuito.
Só para se ter noção, Caracciola era tricampeão do Europeu de Grand Prix (35, 37 e 38), um campeonato que só tinha tido 6 edições até aquele momento. Ou seja, ele tinha bastante prestigio. Lang por outro lado também desapareceu do circuito.
Neubauer foi atrás de Lang e encontrou ele sentado junto com sua esposa embaixo de uma palmeira, ela chorava, dizia que não iria deixar o marido correr, porque já estava farta das crises de ciúmes de Caracciola. Max Sailer, que era diretor da Mercedes teve que intervir.
Ele convenceu Lang, que fez o que Neubauer havia proposto para ele antes de toda a discussão. Ele foi lá e conseguiu o segundo tempo do grid, roubando a posição de Caracciola. Mas as coisas não terminariam por ali, já que a noite elas continuariam bem quentes.
Neubauer revelou a estratégia aos pilotos: Lang iria começar com os pneus usados em treinos, forçaria o carro, mesmo com riscos de quebra. Já Caracciola adotaria uma estratégia mais conservadora, indo mais devagar e parando para um pequeno reabastecimento.
Caracciola pediu a mesma estratégia que Neubauer tinha dado a Lang, isso deixou o chefe bastante nervoso e uma discussão começou. Porém Max Sailer interviu e lembrou os dois pilotos que eles estariam arriscando um trabalho feito pela marca em oito meses em cima daqueles carros.
Eram quatro carros na primeira fila daquele GP. Além dos três já citados, o quarto posto era de Giuseppe "Nino" Farina, com o Alfa Romeo 158, exatamente o piloto e o modelo de carro que seriam os primeiros campeões da F1 onze anos depois.
Aquele era um dia quente, como o esperado. A temperatura ambiente estava em 35°C, sensação térmica em 40°C e a temperatura da pista em 50°C. Um valor absurdo, raramente visto em uma corrida de F1, por exemplo.
Antes da largada houve confusão. Estranhamente, a corrida deveria começar com o apagar de luzes de semáforo e com o Marechal Balbo dando a bandeirada. Com isso, Lang perguntou a Neubauer qual seria a largada correta, ele respondeu que seria o semáforo, segundo o regulamento.
Na largada, Lang se aproveitou do fato, parecia ser o único que sabia como seria dada a verdadeira largada, pulando na frente. Todos os outros largaram só depois da bandeirada, com Farina assumindo a segunda posição e Caracciola em terceiro.
O carro de Luigi Villoresi que era pole, soltou oleo logo na largada, acabou largando muito mal e caiu para sexto lugar. Farina não conseguia acompanhar o ritmo de Lang, mas estava conseguindo manter Caracciola atrás.
A Alfa Corse, divisão de corridas da Alfa Romeo pediu uma punição de 2 minutos porque Lang teria supostamente queimado a largada, porém Neubauer respondeu que eles não tinham culpa se os italianos não leram o regulamento.
Farina perdia em média de 3 a 4 segundos por volta para Lang, que estava forçando seu ritmo ao máximo. Apenas para melhor localização de tempo, o GP durou 30 voltas, e o vencedor cruzou com quase 2 horas. Na volta 7, Caracciola conseguiu passar Farina.
Com o passar das voltas, o carro de Villoresi foi acumulando problemas, entre inda e vindas aos boxes ele foi obrigado a abandonar, por problema no câmbio, que travou, assim forçando o motor a quebrar. Seria a única vez que aquele modelo "aerodinâmico" aparecia em uma corrida.
Mas não seria o único que só correria naquele GP. Enquanto isso, na volta 11, Farina que era terceiro abandonou, seguido por outros quatro carros da Alfa Romeo, que abandonaram até a volta 15. Só restando um na prova, o de Emilio Villoresi
A Alfa Romeo 158 naquele GP teve um problema com o calor, principalmente na parte de refrigeração do motor, essa parte do carro foi toda remodelada após essa corrida. Como já lembrei nessa thread, esse era o modelo de carro que seria o primeiro campeão da F1, em 1950.
Nessas voltas também aconteceram os pit-stops, mas que acabaram não mudando muita coisa na corrida. Na verdade na frente nada mudaria até o fim, sendo que após o abandono de quase todas a esquadra da Alfa Romeo, Emilio Villoresi que era o único sobrevivente estava em terceiro
Lang continuou imprimindo um ritmo forte, chegando a quase dar uma volta e Caracciola no fim, porém ele preferiu diminuir o ritmo. Completando 30 voltas em 1:59:12.36. Foi um grande triunfo para a Mercedes, porém o W165 jamais seria usado novamente.
Foi relatado naquele GP, que as Mercedes estavam lançando gases bem tóxicos. Que causaram queimaduras, irritações nos olhos dos outros pilotos. Mas o caso mais curioso foi de um piloto que aparentemente ficou "bêbado" com o efeito dos gases.
A Mercedes-Benz focou nas corridas Grand Prix daquele ano, correndo com o W154. A W165 poderia ter sido usada no GP da Itália já que esse por ser em solo italiano também só poderia acontecer com carros do regulamento Voiturette. Essa que seria a última etapa do Europeu
Porém existem várias duvidas se essa corrida iria existir, em um primeiro momento se imagina que ela foi cancelada em virtude do inicio da Segunda Guerra Mundial, mas se forem a atentar a fatos da época essa versão fica bem contestada.
Já que aparentemente a etapa foi cancelada em Julho, antes da guerra, e antes da etapa da Suíça, última que contou para o campeonato daquele ano. Ou seja, é bem provável que por essa regra dos carros de 3 litros não poderem correr, a AIACR (FIA) já teria cancelado a etapa antes.
6 anos depois, Carassiola tentaria inscrever um desses carros na Indy 500 de 1946, porém ele não teve liberação das autoridades suíças, e foi impedido de correr. Por fim, existe uma unidade desse carro no Museu da Mercedes, em Stuttgart

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