Viés cognitivo são armadilhas que nossas mentes nos pregam e que tornam mais difícil o julgamento racional de uma determinada situação. Em Medicina, eles podem atrapalhar o processo de diagnóstico clínico.
Então, resolvi fazer um fio exemplificando alguns vieses cognitivos.
Ancoramento: se prender a alguma informação e negligenciar novos dados a partir daí. Ocorre quando não se sistematiza o atendimento. P ex, FA de alta + dor torácica.
Sistematizando, pode se descobrir que a alta resposta e a dor são consequências de algum diagnóstico despercebido.
Disponibilidade: uma recente experiência pode fazer você pensar que as coisas são mais comuns do que são.
P ex: você recentemente diagnosticou um TEP subsegmentar (provavelmente falso positivo) e agora está com medo desses TEPs quase assintomáticos, e pede muito mais tomografias.
Negligência da taxa base - provavelmente o mais comum (por desconhecimento): quando o médico desconsidera a probabilidade pré-teste ou a prevalência da doença na elaboração do diagnóstico.
P ex: acreditar em uma troponina positiva em alguém com baixa probabilidade pré-teste.
“Escolha de cerejas”: um tipo de viés de confirmação, é quando o médico observa apenas sinais, sintomas e exames que fazem sentido na hipótese montada por ele.
Também muito comum na análise de estudos científicos, quando se analisam apenas os estudos que beneficiam a narrativa.
Viés de comissão: a supervalorizada tendência à intervenção, ao invés de esperar.
É muito mais fácil ser lembrado por algo que se fez do que por algo que se evitou: o médico que pede muitos exames ou passa remédios ineficazes é de muito mais fácil reconhecimento ao leigo.
Armadilha da ignorância: sabe aquele TEP subsegmentar com imensa chance de ser falso +? Ou aquele paciente que vai falar pra sempre que teve infarto sem supra (tabajara)?
Estes erros nunca chegarão até você: o paciente ficou bem porque não era doente, mas acha que você o salvou.
Viés do gato de Schrodinger (de autoria minha): a ausência do pensamento do tipo “e se nada tivesse sido feito?”, em situações que o paciente PENSA ter estado em risco de morte, beneficia quase sempre o intervencionismo (mesmo que tenha sido fútil) e as iatrogenias.
Viés do fechamento prematuro: quando para de se pensar em novas possibilidades por já haver um diagnóstico firmado. Muitas vezes, esquecemos do processo dinâmico das doenças. P ex: alguém com IC perfil B que, após os diuréticos, não se percebe que agora está desidratada.
Viés de superconfiança: muitos médicos estão no primeiro pico da curva de Dunning-Kruger, não reconhecem a incerteza dos processos médicos, nunca pensam na acurácia dos exames que pedem ou na eficácia dos tratamentos que prescrevem.
São superconfiantes em seus andares de bêbados.
Os primeiros passos para se evitarem esses e outros vieses cognitivos:
- Sistematize seus atendimentos e revise suas condutas constantamente
- Admita a incerteza da Medicina
- Conheça o raciocínio bayesiano (o livro tá chegando!)
- Vem tomar um sol aqui no vale de Dunning-Kruger

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25 Dec
Eis que acordo com um presente: alguém me pergunta “qual a evidência que o tratamento precoce não funciona?”
A resposta óbvia (que não passa pela cabeça dele) é outra pergunta: qual a evidência que funciona?
Descontruindo, nesse fio, o tal “estudo do Pierre Kory” e a ivermectina.
Algumas considerações: 1. Por favor, parem de inverter o ônus da prova. É tão simples: se não há evidência de benefício, não peçam evidência de falta de benefício. Não é assim que ciência funciona.
2. Não ache que sabe interpretar evidências por saber que p < 0,05 é significativo
O que é o “estudo” (entre aspas) do Pierre Kory? R: uma tentativa falha de fazer uma revisão sistemática. Por que falha?
Porque, como o nome diz, revisões sistemáticas devem sistematizar a maneira como se incluem estudos nessa revisão.
É um pressuposto de revisões sérias.
Read 15 tweets
24 Dec
Existência do Papai Noel (ou “pai natal”, para meus amigos portugueses) baseada em Evidências, a thread. Image
Numa manhã de 25 de Dezembro, acordei e corri para a árvore de Natal pra flagrar um presente pra mim: era um bonequinho dos Power Rangers - o branco.
Qual a probabilidade que aquele incrível presente tenha mesmo sido deixado pelo Papai Noel?
Aos meus sete anos, assumiria a probabilidade pré-teste de o Papai Noel realmente existir como de 95% (algo que pode até se chamar de “plausibilidade extrema”).
A chance de que, na verdade, a minha mãe tenha deixado lá os presentes, eu dei como apenas 5%.
Read 5 tweets
22 Dec
Quando falo sobre raciocínio bayesiano, sou frequentemente questionado pela incerteza da probabilidade pré-teste.

A transição do método mecanicista para o método baseado em evidências precisa ser concomitante à transição do médico frágil para o modelo de Medicina antifrágil.
O conceito de anti-frágil, melhor definição para o oposto de frágil que “robusto”, por exemplo, vem do matemático Nassim Taleb (@nntaleb), que o descreve como algo que cresce em meio ao caos da incerteza.
Nós somos treinados na faculdade e cobrados pelos pacientes a ser frágeis.
A graduação médica tem um modelo quase inteiramente mecanicista, potencializado por provas trimestrais e, nomeadamente, pela prova de Residência.
A graduação pouco prepara para o raciocínio probabilístico (necessário para interpretar os exames que os futuros médicos pedirão).
Read 9 tweets
18 Dec
Pequeno tutorial de como fazer uma terapia parecer útil (e ganhar canetas caso seja médico inocente ou lotar consultório caso seja charlatão):

1. Invente um mecanismo que explique porquê a droga funciona. Pra melhorar, descubra algum “desfecho substituto” em que ela de fato atue
- Um bom “mecanismo” chama a atenção da maioria, mesmo que seja inventado, ou mesmo que não passe pelo crivo final, que são os estudos clínicos bem feitos.
Um desfecho substituto apaixona qualquer um: quem não gosta de ter um PCR negativado, mesmo que isso não signifique nada?
2. Omita a menção a qualquer estudo que tenha tido desfechos trágicos ou mesmo neutros. O paciente só merece saber daqueles que são positivos.
PS: há diversas terapias consagradas na Medicina que não passariam por esse crivo simples.
Read 11 tweets
15 Dec
Piores argumentos que já me deram para o uso de remédios “me engana que eu gosto” para COVID-19.

1. “Eu tomei qualquer absurdo e me curei.”
R: a mortalidade é de 1-2%. Se você tomou e se curou, não dá pra saber se você na seria os 98-99% que seriam curados naturalmente.
2. É pra ficar em casa esperando morrer?
R: se os medicamentos de mentirinha não reduzem mortalidade, esse argumento infantil também não tem efeito.

O tratamento do COVID é o de suporte e dexametasona em casos com pior evolução. Gostaria que fosse mais amplo, mas não é, ainda.
3. “Qual a evidência que remédio para febre reduz mortalidade no COVID?”
R: por sorte não vi nenhum médico falando, mas foi uma das maiores ignorâncias de alto de pedestal que já ouvi.
Sintomáticos plausivelmente reduzem mortalidade por várias doenças por evitar evolução ruim.
Read 10 tweets
13 Dec
Os pensamentos mecanicista, frequentista e bayesiano. Um resumo:

Mecanicista: todos nós durante a graduação. Faz parte do aprendizado que tenhamos noções sobre fisiopatologia e farmacologia, p ex. É normal que se valorizem os mecanismos e que a cadeira sobre MBE fique às traças.
Um dia, contudo, o médico precisa ter o estalo: o momento da curva de Dunning-Kuger em que a ficha cai: A FACULDADE ME ENSINOU ISSO??
Feliz do médico em que a ficha cai. Ou ele passará o resto da vida no primeiro pico “ignorante” da auto-confiança.
Depois, o médico que é introduzido às evidências científicas vira, primeiro, um frequentista.
Ele já sabe que a seção “evidências” do capítulo que está lendo é mais importante que a seção “mecanismo”.
Mas ao ler uma evidência, ele se fixa muito ao valor de p.
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