Eis que acordo com um presente: alguém me pergunta “qual a evidência que o tratamento precoce não funciona?”
A resposta óbvia (que não passa pela cabeça dele) é outra pergunta: qual a evidência que funciona?
Descontruindo, nesse fio, o tal “estudo do Pierre Kory” e a ivermectina.
Algumas considerações: 1. Por favor, parem de inverter o ônus da prova. É tão simples: se não há evidência de benefício, não peçam evidência de falta de benefício. Não é assim que ciência funciona. 2. Não ache que sabe interpretar evidências por saber que p < 0,05 é significativo
O que é o “estudo” (entre aspas) do Pierre Kory? R: uma tentativa falha de fazer uma revisão sistemática. Por que falha?
Porque, como o nome diz, revisões sistemáticas devem sistematizar a maneira como se incluem estudos nessa revisão.
É um pressuposto de revisões sérias.
Passo 1 da revisão sistemática: qual a base de dados em que o autor vai procurar seus artigos?
Normalmente se seleciona Medline/Pubmed, que é uma base de dados onde há um mínimo rigor para se incluir uma revista . Obs: ênfase na palavra “mínimo” - pelo menos existe.
Os artigos citados na revisão passam por esse crivo? Vejamos.
Ah, excluí os estudos observacionais porque não vou perder meu tempo com estudos que não confirmam hipóteses (não é ad hominem, é só abrir um livro pra checar).
Resultado: Nenhum artigo passa por esse crivo mínimo.
Tem que existir um crivo mínimo porque, sem ele, cresce muito a possibilidade de invenção de dados falsos, manipulação, etc.
“Ah, mas isso aconteceu na NEJM e na Lancet”. Eu sei e critiquei. Se aconteceu nelas, imagine o que se passa nessas predatórias dos slides anteriores.
Passo 2 da revisão sistemática (vou fazer mesmo que já tenha reprovado no passo 1): vamos fazer uma análise básica e superficial da qualidade desses três estudos pra ver se eles merecem nossa atenção (faremos isso com seis perguntas apenas - bem básico mesmo).
As seis perguntas estão dispostas na figura.
Resultado (lembrando que “dizer que fez” ≠ “fazer”). Vamos agora às surpresas de cada um desses artigos,
O estudo do Carvallo é do tipo que usa gráficos de pizza. E apesar de ser considerado pelo eminente Dr. Kory como randomizado, uma simples leitura mostra que não.
Obs: o autor pode ter selecionado pacientes do grupo controle em porta de pronto socorro COVID (viés de seleção).
O estudo do Shouman, aquele que sequer está publicado (consegui alguns dados no clinicaltrials) é do tipo não-cego com desfecho mole (“sintomas”) - mais alguns conceitos da MBE que você deve conhecer.
O risco de viés de arguição numa mistura como essa é inaceitável.
Elgazzar consegue ser o pior de todos:
- Metodologia propositalmente confusa e controversa (para ter uma ideia, ele diz que incluiu apenas pacientes com COVID PCR+, e depois fala de dois grupos de pacientes sem COVID??) - cara de “cherry picking”. Profilaxia manda lembranças.
Concluindo:
- Saber MBE não é saber que um artigo existe e foi significativo. A análise, na verdade, começa pela pergunta “esse artigo merece meu tempo?”.
- Pessoas podem inventar números, podem conduzir estudos lixo e podem ludibriar você.
- Menos zap, mais uptodate, quem sabe?
A forçação de barra com o falso “tratamento precoce” é, analisando a grosso modo, algo tão facilmente refutado, que chega a dar pena de ver os leigos apostando as fichas nisso, e mais pena ainda saber que existem tantos médicos “leigos”.
PS: c19ivermectin, c19study e afins são revisões sistemáticas de ainda mais baixo nível que essa citada (o tal Pierre pelo menos faz de conta que tá fazendo algo sério).
Este site chegou ao absurdo de multiplicar valor de p. E médicos “leigos” compartilham isso.
Ps2: corrigindo a figura da lista de artigos do Pierre:
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Existência do Papai Noel (ou “pai natal”, para meus amigos portugueses) baseada em Evidências, a thread.
Numa manhã de 25 de Dezembro, acordei e corri para a árvore de Natal pra flagrar um presente pra mim: era um bonequinho dos Power Rangers - o branco.
Qual a probabilidade que aquele incrível presente tenha mesmo sido deixado pelo Papai Noel?
Aos meus sete anos, assumiria a probabilidade pré-teste de o Papai Noel realmente existir como de 95% (algo que pode até se chamar de “plausibilidade extrema”).
A chance de que, na verdade, a minha mãe tenha deixado lá os presentes, eu dei como apenas 5%.
Viés cognitivo são armadilhas que nossas mentes nos pregam e que tornam mais difícil o julgamento racional de uma determinada situação. Em Medicina, eles podem atrapalhar o processo de diagnóstico clínico.
Então, resolvi fazer um fio exemplificando alguns vieses cognitivos.
Ancoramento: se prender a alguma informação e negligenciar novos dados a partir daí. Ocorre quando não se sistematiza o atendimento. P ex, FA de alta + dor torácica.
Sistematizando, pode se descobrir que a alta resposta e a dor são consequências de algum diagnóstico despercebido.
Disponibilidade: uma recente experiência pode fazer você pensar que as coisas são mais comuns do que são.
P ex: você recentemente diagnosticou um TEP subsegmentar (provavelmente falso positivo) e agora está com medo desses TEPs quase assintomáticos, e pede muito mais tomografias.
Quando falo sobre raciocínio bayesiano, sou frequentemente questionado pela incerteza da probabilidade pré-teste.
A transição do método mecanicista para o método baseado em evidências precisa ser concomitante à transição do médico frágil para o modelo de Medicina antifrágil.
O conceito de anti-frágil, melhor definição para o oposto de frágil que “robusto”, por exemplo, vem do matemático Nassim Taleb (@nntaleb), que o descreve como algo que cresce em meio ao caos da incerteza.
Nós somos treinados na faculdade e cobrados pelos pacientes a ser frágeis.
A graduação médica tem um modelo quase inteiramente mecanicista, potencializado por provas trimestrais e, nomeadamente, pela prova de Residência.
A graduação pouco prepara para o raciocínio probabilístico (necessário para interpretar os exames que os futuros médicos pedirão).
Pequeno tutorial de como fazer uma terapia parecer útil (e ganhar canetas caso seja médico inocente ou lotar consultório caso seja charlatão):
1. Invente um mecanismo que explique porquê a droga funciona. Pra melhorar, descubra algum “desfecho substituto” em que ela de fato atue
- Um bom “mecanismo” chama a atenção da maioria, mesmo que seja inventado, ou mesmo que não passe pelo crivo final, que são os estudos clínicos bem feitos.
Um desfecho substituto apaixona qualquer um: quem não gosta de ter um PCR negativado, mesmo que isso não signifique nada?
2. Omita a menção a qualquer estudo que tenha tido desfechos trágicos ou mesmo neutros. O paciente só merece saber daqueles que são positivos.
PS: há diversas terapias consagradas na Medicina que não passariam por esse crivo simples.
Piores argumentos que já me deram para o uso de remédios “me engana que eu gosto” para COVID-19.
1. “Eu tomei qualquer absurdo e me curei.”
R: a mortalidade é de 1-2%. Se você tomou e se curou, não dá pra saber se você na seria os 98-99% que seriam curados naturalmente.
2. É pra ficar em casa esperando morrer?
R: se os medicamentos de mentirinha não reduzem mortalidade, esse argumento infantil também não tem efeito.
O tratamento do COVID é o de suporte e dexametasona em casos com pior evolução. Gostaria que fosse mais amplo, mas não é, ainda.
3. “Qual a evidência que remédio para febre reduz mortalidade no COVID?”
R: por sorte não vi nenhum médico falando, mas foi uma das maiores ignorâncias de alto de pedestal que já ouvi.
Sintomáticos plausivelmente reduzem mortalidade por várias doenças por evitar evolução ruim.
Os pensamentos mecanicista, frequentista e bayesiano. Um resumo:
Mecanicista: todos nós durante a graduação. Faz parte do aprendizado que tenhamos noções sobre fisiopatologia e farmacologia, p ex. É normal que se valorizem os mecanismos e que a cadeira sobre MBE fique às traças.
Um dia, contudo, o médico precisa ter o estalo: o momento da curva de Dunning-Kuger em que a ficha cai: A FACULDADE ME ENSINOU ISSO??
Feliz do médico em que a ficha cai. Ou ele passará o resto da vida no primeiro pico “ignorante” da auto-confiança.
Depois, o médico que é introduzido às evidências científicas vira, primeiro, um frequentista.
Ele já sabe que a seção “evidências” do capítulo que está lendo é mais importante que a seção “mecanismo”.
Mas ao ler uma evidência, ele se fixa muito ao valor de p.