Feminicídio e júri. Pode o júri absolver com base na legítima defesa da honra? Se o fizer, pode a decisão ser reformada? (segue o fio).
A CF considera soberana o veredito, no júri. O que isso quer dizer? Não é simples responder a essa pergunta; para além da vagueza do termo, há leis anteriores e posteriores à CF que precisam ser analisadas em conjunto.
A resposta clássica à soberania é a seguinte: o mérito da decisão dos jurados não pode ser revisto, "salvo quando eles decidem de maneira manifesta contra a prova dos autos". Essa exceção, entre aspas, vem de uma alteração do CPP em 1948. Ela é constitucional?
Antes de esboçar uma resposta, convém mencionar que alguns Ministros do STF acham que a decisão do júri pode ser imediatamente cumprida. Isso derivaria da soberania do júri. Trocando em miúdos: não seria preciso aguardar o trânsito em julgado, nesses casos.
Voltemos à soberania e decisão manifestamente contrária à prova dos autos. Alteração no CPP em 2008 simplificou as perguntas que o juiz lê aos jurados (quesitação), inserindo a seguinte: o jurado absolve o acusado? Parece muito o guilty versus not guilty nos filmes, né?
Pois bem. O legislador decidiu, com base na soberania do Júri, que ao Conselho toca responder: (i) houve crime?, desdobrados em quesitos de materialidade e autoria; e depois: (ii) o jurado absolve? Note que não se pergunta quanto a tipicidade, antijuridicidade (legítima, p. ex.)
ou culpabilidade (excesso em legítima excusável, p. ex.). Pula direto pra conclusão, global: absolve, sim ou não. Logo, deu-se poder aos jurados para absolverem pelos motivos que considerarem os mais adequados. Carta branca.
E eles podem decidir manifestamente contra a prova dos autos? Sim. Entendo que a ressalva, de 1948, no trecho do CPP destinado à apelação, é inconstitucional, pois coloca limites à soberania do Conselho.
E mais: o duplo grau de jurisdição é uma garantia que entrou no ordenamento jurídico brasileiro - para além das regras do CPP que, como tal, poderia ser revogadas - pelo Pacto de San José da Costa Rica em 1992. É uma garantia do indivíduo, e não do Estado.
O que nos leva à controversa tese de que o MP sequer poderia recorrer de sentença absolutória, já que o duplo grau é garantia do réu, apenas. No Júri, soberano, menos ainda.
Em resumo: pelo desenho constitucional, convencional e legal, a decisão do Júri não pode ser revista no mérito e, quando absolutória, não pode ser revista e ponto (salvo por nulidade, o que são outros 500...).
Mas, Davi, isso é um absurdo. Dará brechas para a impunidade de feminicidas. Pode até ser verdade, mas invoco aqui Neo, em Matrix, no episódio da colher: ele teria que conformar o mundo para a mudança que parece ser uma colher torta.
Essa colher torta (absolvição de feminicidas) é fruto do mundo entortado por jurados machistas, homens machistas que se tornam assassinos, por apologia à violência contra a mulher etc.
Rever o mérito da absolvição no júri, ainda que em nome de importantes bandeiras, é adaptar a realidade jurídico-normativa para alguns casos (entornar o mundo para que a colher pareça torta). E sempre contra o réu.
O que periga o STF dizer é: decisão condenatória deve ser executada imediatamente; absolutória, depende muito se os jurados poderiam mesmo ter absolvido. Dá para perceber o desequilíbrio da balança?
Uma solução mais adequada seria redesenhar os quesitos. Hoje ao perguntar "absolve?", você dá ao jurado o poder de dizer sim tanto para a legítima ou o excesso escusável, como também para a clemência ou simplesmente para um perdão inominado (e por vezes inominável mesmo).
Toda vez que vc reduz a complexidade (como na quesitação), vc dá margem para que o sistema dê, às vezes, respostas inadequadas. Se quisermos excluir o poder ilimitado de perdão, basta mudar a regra de quesitação.
Querer invalidar o júri que absolveu "contra as provas" é reiterar que o sistema funciona bem apenas quando condena; é fixar um regime jurídico totalmente desigual para o réu; e é, fundamentalmente, interpretar normas punitivas contra o réu.
Seria mais um triste episódio de "tá proibido, mas se quiser pode", agora com as roupas de "soberano, desde que condene".

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