Certa vez fui interpelado aqui no twitter por uma pergunta ao mesmo tempo ingênua e extremamente reflexiva. O seguidor perguntou: “por que cardiologistas morrem do coração?”.
Então fiz esse fio para falar sobre como lidar com as expectativas irrealistas de pacientes.
Certamente, não é uma dúvida só dele. Seccionando a questão, ficaria assim: (a) Se vocês sabem fazer a prevenção, (b) se vocês têm terapias que comprovadamente salvam vidas , por que morrem mesmo assim?
Bem, a verdade é que (e isso não se aplica só à cardiologia):
a) Não sabemos inteiramente como fazer a prevenção. Algumas estratégias indicadas hoje são ineficazes, como mostram alguns estudos modernos. Os exames estão longe de serem acurados e tão são simples como “positivo” e “negativo”. Há exames “famosos” com > 90% de resultados falsos.
b) Mesmo as terapias que são comprovadamente eficazes não são eficazes em 100% das vezes. Alguns remédios clássicos da cardiologia chegam a evitar 1 evento trágico em cada 300 pacientes que prescrevemos. Os melhores evitam 1 evento a cada 30-40 pacientes. Medicina é assim.
Se você é médico, você precisa conhecer os fatos (a) e (b) para fazer boa Medicina. É uma questão de lógica e racionalidade que ajuda na tomada de decisões.
Pena que nem todos conhecem isso - é só dar um pulinho no Instagram de certos colegas ou assistir ao jornal.
Se você é leigo, seria interessante conhecer os fatos (a) e (b) justamente para se prevenir melhor - não achar que porque está tomando remédio X, por exemplo, pode continuar fumando (como já vi inúmeros pós-infartados fazendo).
E também para evitar os colegas do tweet anterior.
Manejo de expectativas irrealistas: 1. Abra sua mente: ouça às propostas do paciente porque você não sabe tudo e ele pode estar mais atualizado. 2. Sendo mesmo irrealista, seja honesto e leve uns minutos explicando a realidade ao seu paciente. 3. Não abra mão dos seus princípios
A Medicina é incrível, mas não como alguns pensam.
Manejar expectativas irrealistas de pacientes é difícil porque o colega do consultório ao lado (por incompetência ou charlatanismo) pode abraçar essas expectativas e deixar você como vilão
Mas vale a pena. A consciência agradece
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O valor de p é uma convenção mais vezes perigosa do que útil em pesquisas médicas porque significa a chance de que os resultados daquela amostra tenham sido encontrados ao acaso. Se p < 0,05 (5%), então alguns médicos aceitam esse resultado e compartilham o estudo pelo zipzop. +
O que não se diz sobre o valor de p?
- Que quanto mais manipulada, fora do usual ou enviesada for a pesquisa, maior a chance de obter valor de p significativo.
- Que deve ser visto como um intermediário da resposta final, não como “encerrador de questão”.
Para exemplificar, imagine que eu quero introduzir um novo fármaco no tratamento do COVID. É uma ótima oportunidade porque isso é uma mina de ouro: basta fazer um post com alguma aparência técnica no Instagram inventando um mecanismo e dizendo que encontrei a cura - sucesso.
Sabe quando você é criança e pede aos seus pais que comprem algo, eles falam que não têm dinheiro e você soluciona isso com “é só fazer um cheque” ou “é só passar no cartão”?
Difícil explicar isso pra criança né?
Mesma coisa com isso aqui. Evidência de jardim de infância. +
O gráfico multiplica os valores de p dos estudos e chega à conclusão de que há uma chance em 910 bilhões de que 148 estudos + sejam falsos.
Bem, vamos lá tentar explicar pra uma criança o que é inflação…
Ou “por que 148 estudos mostrando que lixo é ouro não fazem do lixo, ouro”.
Em primeiro lugar: nenhum desses ditos 148 estudos positivos tem força suficiente para confirmar uma hipótese. Não é número de estudos, mas a força deles. Tenho sempre falado aqui: todos os estudos randomizados, controlados e cegos que testaram a HCQ falharam.
Eis que acordo com um presente: alguém me pergunta “qual a evidência que o tratamento precoce não funciona?”
A resposta óbvia (que não passa pela cabeça dele) é outra pergunta: qual a evidência que funciona?
Descontruindo, nesse fio, o tal “estudo do Pierre Kory” e a ivermectina.
Algumas considerações: 1. Por favor, parem de inverter o ônus da prova. É tão simples: se não há evidência de benefício, não peçam evidência de falta de benefício. Não é assim que ciência funciona. 2. Não ache que sabe interpretar evidências por saber que p < 0,05 é significativo
O que é o “estudo” (entre aspas) do Pierre Kory? R: uma tentativa falha de fazer uma revisão sistemática. Por que falha?
Porque, como o nome diz, revisões sistemáticas devem sistematizar a maneira como se incluem estudos nessa revisão.
É um pressuposto de revisões sérias.
Existência do Papai Noel (ou “pai natal”, para meus amigos portugueses) baseada em Evidências, a thread.
Numa manhã de 25 de Dezembro, acordei e corri para a árvore de Natal pra flagrar um presente pra mim: era um bonequinho dos Power Rangers - o branco.
Qual a probabilidade que aquele incrível presente tenha mesmo sido deixado pelo Papai Noel?
Aos meus sete anos, assumiria a probabilidade pré-teste de o Papai Noel realmente existir como de 95% (algo que pode até se chamar de “plausibilidade extrema”).
A chance de que, na verdade, a minha mãe tenha deixado lá os presentes, eu dei como apenas 5%.
Viés cognitivo são armadilhas que nossas mentes nos pregam e que tornam mais difícil o julgamento racional de uma determinada situação. Em Medicina, eles podem atrapalhar o processo de diagnóstico clínico.
Então, resolvi fazer um fio exemplificando alguns vieses cognitivos.
Ancoramento: se prender a alguma informação e negligenciar novos dados a partir daí. Ocorre quando não se sistematiza o atendimento. P ex, FA de alta + dor torácica.
Sistematizando, pode se descobrir que a alta resposta e a dor são consequências de algum diagnóstico despercebido.
Disponibilidade: uma recente experiência pode fazer você pensar que as coisas são mais comuns do que são.
P ex: você recentemente diagnosticou um TEP subsegmentar (provavelmente falso positivo) e agora está com medo desses TEPs quase assintomáticos, e pede muito mais tomografias.
Quando falo sobre raciocínio bayesiano, sou frequentemente questionado pela incerteza da probabilidade pré-teste.
A transição do método mecanicista para o método baseado em evidências precisa ser concomitante à transição do médico frágil para o modelo de Medicina antifrágil.
O conceito de anti-frágil, melhor definição para o oposto de frágil que “robusto”, por exemplo, vem do matemático Nassim Taleb (@nntaleb), que o descreve como algo que cresce em meio ao caos da incerteza.
Nós somos treinados na faculdade e cobrados pelos pacientes a ser frágeis.
A graduação médica tem um modelo quase inteiramente mecanicista, potencializado por provas trimestrais e, nomeadamente, pela prova de Residência.
A graduação pouco prepara para o raciocínio probabilístico (necessário para interpretar os exames que os futuros médicos pedirão).