O valor de p é uma convenção mais vezes perigosa do que útil em pesquisas médicas porque significa a chance de que os resultados daquela amostra tenham sido encontrados ao acaso. Se p < 0,05 (5%), então alguns médicos aceitam esse resultado e compartilham o estudo pelo zipzop. +
O que não se diz sobre o valor de p?
- Que quanto mais manipulada, fora do usual ou enviesada for a pesquisa, maior a chance de obter valor de p significativo.
- Que deve ser visto como um intermediário da resposta final, não como “encerrador de questão”.
Para exemplificar, imagine que eu quero introduzir um novo fármaco no tratamento do COVID. É uma ótima oportunidade porque isso é uma mina de ouro: basta fazer um post com alguma aparência técnica no Instagram inventando um mecanismo e dizendo que encontrei a cura - sucesso.
Começo fazendo uma pesquisa no google pelos termos “metamizole” e “antiviral activity”. Passo por duas páginas de pesquisa em que não se fala nada disso, mas na terceira página encontro a pesquisa que queria.
PS: isso é ironia. Não é assim que deve ser feita pesquisa.
Com aquele print, eu “comprovo” aos médicos mecanicistas que o metamizol é um bom medicamento para COVID.

Imagem real do corpo humano não se importando com uma modificação causada por um remédio em uma via metabólica específica:
Outros médicos dirão que é preciso dar a essa hipótese a coroa do “valor de p”.
Para fazer isso, eu posso conduzir um estudo tipo trial randomizado duplo-cego multicêntirco - algo extremamente burocrático e caro;
Ou… Posso inventar uma pesquisa.
Entraves para isso: clinicaltrials e revisão por pares (peer review).
- Clinicaltrials.gov é um registro de ensaios clínicos em que o pesquisador registra seu trial. Para registrar: acessar o site e escrever os dados. Nível: fácil.
- Revisão por pares: outros pesquisadores lerão meu trabalho quando minha pesquisa estiver pronta. Se aceitarem minha metodologia, o estudo será publicado. Nível: médio.
Observe que o peer review aceita a metodologia escrita, não a veracidade nem relevância dela e do resultado.
Pesquisa inventada!
- Grupo que recebeu metamizol teve 0 mortes e 478 sobreviventes
- Grupo que recebeu nada teve 39 mortes e 75 sobreviventes.
Certos médicos leriam esse valor de p como uma chance em 100 mil de o resultado ser falso.
Mas é falso, eu inventei - juro.
E exatamente por eu ter inventado e inflado os resultados com intuito de obter p, é que eu obtive p significativo.
- p é a chance de que o resultado tenha sido obtido ao acaso.
- Não foi mesmo ao acaso que eu inventei esses números. Tinha um objetivo: quero inventar fake science.
A revisão por pares, o entrave ainda a ser vencido, pode ser mais difícil.
- Algum pesquisador pode achar estranho um resultado tão positivo (quando a esmola é grande…)
- Outro pode pensar que o grupo “nada” teve mais mortes que a letalidade habitual do COVID (34%??)
Para não ter que passar por esse crivo chato, eu vou publicar minha pesquisa no medrXiv ou em qualquer revista predatória - que não tenha peer review, cobre apenas dinheiro para publicar ou seja de algum amigo do Didier Raoult.
Muito mais fácil assim.
Sendo um terreno fértil para ganhar dinheiro, fama e prestígio (pelo menos entre a classe que não entende de “lógica”), e havendo um caminho tão fácil para se percorrer, temos que nos precaver:
- Seja conservador e cético nessa questão.
- Números não mentem, pessoas sim.
Só para deixar claro: não estou falando que todas as pesquisas foram inventadas. Mas muitas delas:
- Não passaram pelo clinicaltrials (passar não é sinônimo de qualidade)
- Não passaram por peer review (passar também não é garantia de questão encerrada)
Mesmo as pesquisas que passaram por esses crivos MÍNIMOS publicadas em jornais sérios devem ser interpretadas.
- Observacionais geram hipóteses. Trials podem confirmar.
- Qualquer estudo pode ter vieses. Entenda de MBE para reconhecê-los
- Qualquer um pode manipular o valor de p.
PS: Metamizol é o outro nome da nossa querida Dipirona.
Imagina que legal: “Procure seu tratamento precoce com dipirona”.

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28 Dec 20
Sabe quando você é criança e pede aos seus pais que comprem algo, eles falam que não têm dinheiro e você soluciona isso com “é só fazer um cheque” ou “é só passar no cartão”?
Difícil explicar isso pra criança né?
Mesma coisa com isso aqui. Evidência de jardim de infância. +
O gráfico multiplica os valores de p dos estudos e chega à conclusão de que há uma chance em 910 bilhões de que 148 estudos + sejam falsos.
Bem, vamos lá tentar explicar pra uma criança o que é inflação…
Ou “por que 148 estudos mostrando que lixo é ouro não fazem do lixo, ouro”.
Em primeiro lugar: nenhum desses ditos 148 estudos positivos tem força suficiente para confirmar uma hipótese. Não é número de estudos, mas a força deles. Tenho sempre falado aqui: todos os estudos randomizados, controlados e cegos que testaram a HCQ falharam.
Read 11 tweets
28 Dec 20
Certa vez fui interpelado aqui no twitter por uma pergunta ao mesmo tempo ingênua e extremamente reflexiva. O seguidor perguntou: “por que cardiologistas morrem do coração?”.

Então fiz esse fio para falar sobre como lidar com as expectativas irrealistas de pacientes.
Certamente, não é uma dúvida só dele. Seccionando a questão, ficaria assim: (a) Se vocês sabem fazer a prevenção, (b) se vocês têm terapias que comprovadamente salvam vidas , por que morrem mesmo assim?
Bem, a verdade é que (e isso não se aplica só à cardiologia):
a) Não sabemos inteiramente como fazer a prevenção. Algumas estratégias indicadas hoje são ineficazes, como mostram alguns estudos modernos. Os exames estão longe de serem acurados e tão são simples como “positivo” e “negativo”. Há exames “famosos” com > 90% de resultados falsos.
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25 Dec 20
Eis que acordo com um presente: alguém me pergunta “qual a evidência que o tratamento precoce não funciona?”
A resposta óbvia (que não passa pela cabeça dele) é outra pergunta: qual a evidência que funciona?
Descontruindo, nesse fio, o tal “estudo do Pierre Kory” e a ivermectina.
Algumas considerações: 1. Por favor, parem de inverter o ônus da prova. É tão simples: se não há evidência de benefício, não peçam evidência de falta de benefício. Não é assim que ciência funciona.
2. Não ache que sabe interpretar evidências por saber que p < 0,05 é significativo
O que é o “estudo” (entre aspas) do Pierre Kory? R: uma tentativa falha de fazer uma revisão sistemática. Por que falha?
Porque, como o nome diz, revisões sistemáticas devem sistematizar a maneira como se incluem estudos nessa revisão.
É um pressuposto de revisões sérias.
Read 15 tweets
24 Dec 20
Existência do Papai Noel (ou “pai natal”, para meus amigos portugueses) baseada em Evidências, a thread.
Numa manhã de 25 de Dezembro, acordei e corri para a árvore de Natal pra flagrar um presente pra mim: era um bonequinho dos Power Rangers - o branco.
Qual a probabilidade que aquele incrível presente tenha mesmo sido deixado pelo Papai Noel?
Aos meus sete anos, assumiria a probabilidade pré-teste de o Papai Noel realmente existir como de 95% (algo que pode até se chamar de “plausibilidade extrema”).
A chance de que, na verdade, a minha mãe tenha deixado lá os presentes, eu dei como apenas 5%.
Read 5 tweets
24 Dec 20
Viés cognitivo são armadilhas que nossas mentes nos pregam e que tornam mais difícil o julgamento racional de uma determinada situação. Em Medicina, eles podem atrapalhar o processo de diagnóstico clínico.
Então, resolvi fazer um fio exemplificando alguns vieses cognitivos.
Ancoramento: se prender a alguma informação e negligenciar novos dados a partir daí. Ocorre quando não se sistematiza o atendimento. P ex, FA de alta + dor torácica.
Sistematizando, pode se descobrir que a alta resposta e a dor são consequências de algum diagnóstico despercebido.
Disponibilidade: uma recente experiência pode fazer você pensar que as coisas são mais comuns do que são.
P ex: você recentemente diagnosticou um TEP subsegmentar (provavelmente falso positivo) e agora está com medo desses TEPs quase assintomáticos, e pede muito mais tomografias.
Read 11 tweets
22 Dec 20
Quando falo sobre raciocínio bayesiano, sou frequentemente questionado pela incerteza da probabilidade pré-teste.

A transição do método mecanicista para o método baseado em evidências precisa ser concomitante à transição do médico frágil para o modelo de Medicina antifrágil.
O conceito de anti-frágil, melhor definição para o oposto de frágil que “robusto”, por exemplo, vem do matemático Nassim Taleb (@nntaleb), que o descreve como algo que cresce em meio ao caos da incerteza.
Nós somos treinados na faculdade e cobrados pelos pacientes a ser frágeis.
A graduação médica tem um modelo quase inteiramente mecanicista, potencializado por provas trimestrais e, nomeadamente, pela prova de Residência.
A graduação pouco prepara para o raciocínio probabilístico (necessário para interpretar os exames que os futuros médicos pedirão).
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