A história de laboratórios de vacinas Covid buscando não se responsabilizar por efeitos adversos deixou muitos com pé atrás. Parece suspeito, mas é só complexo. Escrevi longo texto no @JotaInfo explicando por que você não precisa se preocupar. Quer entender rápido? Segue o fio 👇
O 1º ponto a saber é que a não-responsabilização por efeitos adversos raros não é novidade das vacinas novas. Na verdade, essa regra já vigora para todas as vacinas em países desenvolvidos há décadas. Brasil, países pobres e em desenvolvimento é que ainda têm regulação antiga.
À primeira vista parece algo contra intuitivo ou até absurdo, porém há boas razões para ela existir. Vamos entender as razões para essa cláusula. Para isso precisaremos de um pouco de direito, economia, estatística e também de história.
Nos anos 80 nos Estados Unidos o país passou por um problema grave de falta de vacinas DTP (contra difteria, tétano e coqueluche) para vacinação infantil. O problema decorreu da falência de laboratórios produtores e desistência de outros laboratórios de continuar produzindo.
Rumores da época colocavam suspeitas sobre segurança da DPT, alegando que ela poderia causar danos cerebrais permanentes tal como a própria coqueluche pode causar em casos raros (encefalopatia de coqueluche). Rumores trouxeram medos exagerados e a formação do movimento Anti-DPT.
Conhecimento médico e farmacológico apontava que vacinas DPT eram seguras e inspeções na produção mostravam que elas seguiam normas sanitárias e de segurança. Hoje e desde os anos 90 já se sabe que não havia nenhum problema de segurança nas vacinas DPT. sciencedirect.com/science/articl…
Mas o receio disseminado aumentou a chance de que diante de qualquer problema ocorrido em dias próximos de quando uma criança recebia a vacina DPT a família entrasse com um processo na justiça contra a fornecedora – mesmo se o problema não tivesse qualquer relação com a vacina.
Como milhões de pessoas tomam vacinas anualmente, qualquer pequena probabilidade de se entrar com um processo leva imediatamente a milhares de casos judiciais. O sistema era ineficiente para todos os envolvidos: produtores, famílias reclamantes, judiciário e governo como um todo.
Da parte das famílias que dentro de um grupo minoritário e extremamente raro em que a demanda era legítima, o sistema não era eficiente. Demonstrar relação de causa e efeito entre a vacina e o problema era muito difícil. Componentes conhecidos e seguros, sem erros industriais.
Convencer da relação com vacina diante do juiz era por vezes mais um ato de retórica e compaixão do que de medicina. O resultado era imprevisível e individualizado. Gerava indenizações milionárias para alguns, nada para outros, sem critério. É um sistema criticado pela OMS:
Empresas arcavam com custo judicial de responder processos simultâneos e aleatórios. Havia risco de causa infundada ganhar e gerar precedentes, levando milhares de pessoas sem problema com vacina pegar carona (free-ride) na justiça exigindo reparações por riscos que não correram.
Consequência da regulação mal desenhada, farmacêuticas que produziam vacina migraram para outras áreas. Investimentos para pesquisa de novas vacinas caíram. Ano a ano caía nº de empresas produzindo DPT nos EUA até em 1985 restar apenas uma empresa. Entrou em falta e preço subiu.
Foi nesse contexto que em 1986 o Congresso dos Estados Unidos promulgou o National Childhood Vaccine Injury Act (VICP). Para entender como o VICP melhorou o sistema antigo, precisamos de um pouco de Análise Econômica do Direito.
O VICP criou o Fundo Nacional de Compensação por Danos de Vacinação, gerido por órgãos de saúde e do judiciário dos EUA. O fundo é financiado por um imposto de baixo valor que incide sobre vacinas em circulação no país. hrsa.gov/vaccine-compen…
Ao invés do reclamante entrar com um processo contra a empresa produtora, indivíduos e famílias que acreditem que tenham sofrido algum efeito colateral raro imprevisto entram com ação nesse fundo. O caso é analisado por técnicos e juízes especialistas no tema - que não é trivial.
Para o judiciário, o sistema é mais eficiente. Centraliza o conhecimento especializado necessário para lidar com as alegações médicas envolvidas. As ações são respondidas mais rápido e a não-participação das empresas facilita o julgamento do mérito e padronização de indenizações.
Foi melhor também para famílias. Procedimentos-padrão ao invés dos processos longos e incertos. O sistema admite reparação até por alguns problemas que cientificamente não têm relação causal com as vacinas. Mas exige que a pessoa tenha sofrido dano, o que já impede oportunistas.
Arranjo vigora nos EUA há 32 anos. Mesmo com algumas reparações por casos raros sem relação de causa e efeito, entre 2006 e 2018 foram só 7.565 indenizações – nº irrisório diante das 3.761.744.351 (3,7 bilhões) de doses administradas no período. hrsa.gov/vaccine-compen…
A relação risco-benefício é o critério decisivo de aprovação regulatória de qualquer fármaco (não só vacinas). Pelo lado do risco, as vacinas tiveram em média nos Estados Unidos 1 indenização a cada 500.000 doses administradas.
Esse risco é muitas ordens de magnitude menor do que basicamente qualquer outro tipo de remédio aprovado e disponível no mercado. Já em termos de benefícios, a eficácia protetiva e redução da gravidade das doenças pelas vacinas costumam superar os de outros fármacos.
Não é esperado que um fármaco tenha risco zero – basta ler reações adversas na bula de qualquer remédio. O Ricardo Parolin fez um ótimo fio mostrando contra indicações e efeitos raros de alguns remédios da moda vendidos por aí como "sem efeitos colaterais"
Em bulas, para um evento adverso ser considerado muito raro, basta ocorrer 1 evento adverso a cada 10.000 usos. Uma proporção que é claramente baixa, porém é até comum se comparada com a verificada em vacinas.
Vimos que do ponto de vista regulatório não é inteligente deixar oferta de vacinas ser destruída por risco jurídico injustificado, o mesmo vale para o cidadão que com o uso das vacinas tem um risco menor e benefício muito maior do que outros fármacos que já consome usualmente.
Para as empresas, o fundo atuava como sistema de seguro obrigatório e ilimitado (No-Fault Insurance). O imposto sobre vacinas aumentava o preço, mas retirava risco jurídico da litigância de má-fé e os custos elevados de se responder processos judiciais sem cabimento. Continua 👇
A nova regulação trouxe segurança jurídica para o setor. Com ela, investimentos e pesquisas sobre vacinas voltaram. A oferta também foi normalizada em poucos anos. É seguro dizer que não veríamos tanta pesquisa em vacina contra o Covid hoje se não fosse esse regime regulatório.
Infelizmente, a litigância exagerada e de má-fé no tema de vacinas é um risco esperado da aplicação de qualquer vacina ou qualquer fármaco que fosse utilizado na mesma escala que elas – mesmo se forem perfeitamente seguros. É esperado por mero efeito estatístico.
Por ex, ~60 milhões de brasileiros são vacinados contra a gripe por ano. Em três meses, em média 65 mil vacinas aplicadas POR HORA. Por puro acaso é inevitável que alguma pessoa vacinadas terá um problema inusitado próximo de se vacinar. Cada acaso é potencial novo caso judicial.
Como esses efeitos estatísticos são esperados e já se sabe há décadas das ineficiências da via judicial individualizada para obter reparações por efeitos adversos de vacinas, muitos países mudaram para o sistema de compensação similar ao que descrevi aqui para os Estados Unidos.
Alguns deles inclusive são muito anteriores, como Alemanha (1961), França (1963), Japão (1970) e Áustria (1973). Até 2018, OMS identificou 25 países já adotam o sistema de compensação por danos sem responsabilização, sendo 23 países ricos e desenvolvidos. who.int/bulletin/volum…
Anita Anand, uma ministra canadense, questionada sobre laboratórios quererem contrato de não-responsabilização, respondeu: “Essas cláusulas são padrão em contratos de vacinas... e sim, [farão parte dos contratos] no Canadá, não somos diferentes de nenhum outro país do mundo.”
No entanto, nem todos têm essa tranquilidade e conhecimento. Brasil infelizmente está nesse outro grupo. Ainda tratamos atribuição de responsabilidade e indenizações em vacinas pelo sistema antigo, individualizado, lento e desigual que países desenvolvidos abandonaram há décadas.
Pior, no Brasil o ministro da saúde Pazuello parece desconhecer que essa regulação é comum e já antiga nos países desenvolvidos. Está interpretando como exigência exagerada e é um dos motivos que está alegando para não comprar doses da Pfizer. Erro letal.
exame.com/brasil/pazuell…
Entendo que a inadequação regulatória e falta de tratamento mais moderno do tema no Brasil nos coloca diante de pelo menos quatro riscos significativos e graves, do mais urgente ao mais de médio-prazo:
(1) Maiores dificuldades de firmar acordos com laboratórios fornecedores de vacinas contra o Covid;

(2) Queda na confiança nas vacinas contra o Covid devido à falsa associação entre a cláusula contratual e a segurança efetiva das vacinas, diminuindo a cobertura das vacinas;
(3) Judicialização excessiva de casos aleatórios incontroláveis, podendo levar aos mesmos problemas que ocorreram nos Estados Unidos nos anos 80 de falta de laboratórios ofertando a vacina;
(4) Transbordamento da desconfiança e judicialização das vacinas contra o Covid para vacinas tradicionais usadas contra outras doenças e que antes não sofriam muito com esses problemas jurídicos, agravando o alarmante quadro atual queda de cobertura vacinal contra outras doenças;
Conclusão: A pandemia do novo coronavírus encontrou o Brasil em posição frágil, historicamente atrasada, no tratamento da responsabilização e indenizações no tema das vacinas. Não temos um fundo de indenização constituído, nem regime especializado para responder a essas demandas.
O fio acabou ficando longo, mas o artigo original era bem maior, rs. Aqui ele completo no Jota com todas as referências utilizadas: jota.info/opiniao-e-anal…

Para quem não tem acesso ao Jota, também disponibilizei o texto no meu Blog: thomasvconti.com.br/2021/direito-e…

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5 Jan
Em economia temos conceito de bem comum, que é um bem rival e não-excludente. Exemplo: vagas na rua. Vacinas não são bem comum porque são excludentes. Se elas não tivessem propriedade da exclusão, não conseguiríamos criar a lista de priorização que diz quem pode recebê-las antes.
Dizer que vacinas são bem comum provavelmente se deve a uma confusão com a saúde dos outros ser bem público (não-rival e não-excludente). Viver numa população imunizada contra uma doença traz benefícios individuais que são não-rivais e não é possível excluir alguém de recebê-los.
Isso explica, por ex, por que é tão difícil lidar com movimento antivacina. Eles recusam a vacina, mas pegam carona (free-ride) no bem público que a vacina gera que é a imunidade coletiva. Se esse comportamento se generaliza, acaba destruindo o bem público da imunidade coletiva.
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4 Jan
Oferta de vacinas pelo setor privado em uma pandemia é muito polêmico. Além da saúde pública, toca questões morais e políticas sensíveis. Há risco grave de cairmos em respostas simples que só prejudicarão combate ao Covid. Um pouco de análise econômica pode ajudar. Segue o fio👇
Antes de termos uma resposta, é preciso definir devidamente o problema. No caso são vários, vou numerar:

1 Maior nº de acordos de vacinas
2 Maior nº de doses
3 Máxima velocidade
4 Máximo impacto preventivo
5 Máximo impacto na redução do contágio

NÃO há resposta simples e fácil.
Vou apresentar duas respostas simples, fáceis e erradas que acredito que terão maior adesão no Brasil porque nós costumamos gostar muito desse tipo de resposta errada. Apresentarei a intuição e em seguida por que não é uma boa. Pode não caber no mesmo tweet então segue lendo.
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19 Dec 20
As vacinas mRNA (da Pfzer-BioNTech e da Moderna) são brilhantes no nível da ciência que têm por trás. O @WheatNOil fez um fio divertido em inglês explicando como elas funcionam, segue aqui minha tradução e entenda essa tecnologia INCRÍVEL 👇🧵
A primeira coisa a saber é como o seu sistema imune funciona. Basicamente, suas células de imunidade atacam qualquer coisa estranha que entra no seu corpo. Se elas veem uma proteína, um vírus, ou uma bactéria ou qualquer coisa que elas não reconhecem, elas lançam um ataque.
Por exemplo, se sistema imune está lutando contra vírus, ele demora para ter contra-ataque completo. Precisa entender qual parte do vírus atacar e então aumentar produção do que ele precisa para atacar essa parte. Pode levar dias. Enquanto isso, o vírus se multiplica e expande.
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17 Dec 20
Com ciência e tecnologia, coisas que aterrorizavam nossos antepassados não existem mais. Daí alguns que sempre viveram no conforto esquecem do que esse bem-estar depende, por ex de VACINAS. Prepare o estômago e segue o fio para saber das doenças que matavam milhões antes delas 👇
VARÍOLA - a doença

Matava por volta de 30% dos infectados pelo vírus. Apenas no século 20, estima-se que a varíola tenha matado mais de 300 MILHÕES de pessoas. Crianças eram principais vítimas.

Na foto de 1901, criança não-vacinada (esq.) ao lado de criança vacinada.
VARÍOLA - a vacina

A 1ª vacina foi descoberta por Edward Jenner em 1796. Jenner investigou por que mulheres que tiravam leite de vacas não contraiam varíola. O gado sofria com variante menos letal da doença e se expor a essa variante criava imunidade contra a varíola humana.
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11 Sep 20
Cenário apocalíptico pela Califórnia durante o grande incêndio que ocorre nas florestas. A tecnologia para prevenir incêndios dessa escala é antiga e dinheiro na Califórnia não falta. Então por que os incêndios voltam todos os anos? É mais complexo do que parece. Segue o fio 👇
1) Por que os incêndios acontecem? A maior umidade é no outono-inverno. Durante primavera e verão, falta de chuvas e alta temperatura secam a vegetação e folhas se acumulam no chão. É o combustível do incêndio. Falta só a fagulha.
2) A fagulha. Ela pode ter causas humanas, mas também há causas naturais e incontroláveis, como raios. Não falta combustível, então é previsível e só questão de tempo. Não por acaso muitas espécies da região tem sementes, folhas e raízes adaptadas ao ciclo de incêndios.
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9 Sep 20
Em tempo de aumento do preço dos alimentos, muita gente lembrando que 70% dos alimentos consumidos no Brasil vem da agricultura familiar. Mas você sabia que essa informação é falsa? A história por trás desse número equivocado é um tanto curiosa. Segue 👇
Para começar, o que significa "70% dos alimentos", como se faz esse cálculo? É uma medida por unidade, por ex "70% das maçãs"? Ou uma medida em quilograma, por ex "70% das toneladas anuais de arroz"? Ou é uma medida por valor de produção, por ex "70% das vendas de feijão"? 👇
Resposta: ninguém sabe. A fonte original dessa estatística parece ter sido notícia em canais oficiais do governo entre 2011 e 2012, mas sem menção a qualquer estudo para avaliarmos qual foi metodologia utilizada. Ao que consta, sequer existe algum estudo por trás da afirmação. 👇
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