Oferta de vacinas pelo setor privado em uma pandemia é muito polêmico. Além da saúde pública, toca questões morais e políticas sensíveis. Há risco grave de cairmos em respostas simples que só prejudicarão combate ao Covid. Um pouco de análise econômica pode ajudar. Segue o fio👇
Antes de termos uma resposta, é preciso definir devidamente o problema. No caso são vários, vou numerar:
1 Maior nº de acordos de vacinas
2 Maior nº de doses
3 Máxima velocidade
4 Máximo impacto preventivo
5 Máximo impacto na redução do contágio
NÃO há resposta simples e fácil.
Vou apresentar duas respostas simples, fáceis e erradas que acredito que terão maior adesão no Brasil porque nós costumamos gostar muito desse tipo de resposta errada. Apresentarei a intuição e em seguida por que não é uma boa. Pode não caber no mesmo tweet então segue lendo.
Resposta simples e errada:
"Deixa o setor privado fazer o que quiser."
Intuição: "Quanto mais gente e recursos buscando ofertas vacinas, melhor. Deixando o setor privado livre ele buscará ao máximo mais vacinas e ofertará tão rápido quanto possível."
Simples, mas não ajuda.
Dos 5 problemas, sendo otimista essa resposta ajudaria no 3 (máxima velocidade).
1 e 2 não são garantidos porque sem regras o setor privado pode competir com acordos e doses do sistema público.
4 e 5 não têm garantia porque quem tem $$ pode ter risco baixo e poucos contatos.
Agravante desse caminho é que ao não garantir 4 e 5, acirra sensação de injustiça. Nos EUA, mesmo com regras de acesso e distribuição gratuita houve revoltas de profissionais de saúde diante de privilégios. Com desigualdade BR, revolta seria muito maior. Seria ponto para o Covid.
Outra resposta simples e errada:
"Sob nenhuma condição setor privado pode ofertar vacinas."
Intuição: "É imoral que dinheiro seja critério de acesso. Trata-se de problema de saúde pública, vacinas privadas devem ser colocadas à serviço das autoridades."
Simples, mas não ajuda.
Dos 5 problemas, sendo otimista essa resposta ajudaria nos itens 4 e 5 (prioridade para risco e prevenção).
1, 2 e 3 seriam prejudicados, pois não haveria incentivo para setor privado buscar vacinas próprias. Recursos e capacidade privada para vacinar ficariam sub-utilizados.
Ao não fazer bom uso de 1, 2 e 3, essa via também traz sensação de injustiça. Hoje não há vacina aprovada, mas quanto mais novas vacinas surgirem sem governo trazer, mais oportunidades perdidas de se obter por outras vias. Isto é, insatisfação crescente. Seria ponto para o Covid.
Como avançar? Todo mercado funciona sob regras institucionais. Temos criatividade e formas de criar todo tipo de restrição ou incentivo no tema vacina. Com tantas opções, mesmo quando "Liberar geral" ou "Proibir geral" traria benefício, dificilmente será maior benefício possível.
Então nosso desafio é pensar restrições e incentivos que usem máxima capacidade para + acordos, trazer + doses, vacinar + rápido, porém com impacto em reduzir óbitos e novas infecção que priorização de grupos de risco e trabalhadores expostos traria. E com sensação de justiça.
Evidente que eu não tenho a menor pretensão de ter uma resposta definitiva para isso. Mas gostaria de abrir algumas possibilidades para incentivar um debate mais qualificado, que nos tire dessas respostas de senso comum e caminhe para algo mais útil contra o Covid.
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Um passo inicial que é decisivo para eventual oferta privada ajudar no combate à pandemia seria garantir que ela não dividirá o bolo da oferta pública. Ela precisaria *somar* acordos e doses, não desviar de acordos e doses públicas. Também ajudaria na percepção de justiça.
Algumas regras possíveis para esses fins: (1) Só vacinas que governo não tem acordo (2) Só vacinas que governo não tenha iniciado negociação (3) Só vacinas que o governo já saiba que não tentará negociar
Notem a rigidez crescente. Mas mesmo (3) seria mais flexível que proibir.
Poder-se-ia contra-argumentar que depois que a vacina entrar no país o poder público deveria requisitá-la para si. Porém se fizermos isso, mesmo com indenização, seriam cortados incentivos para trazer mais. E a vacinação durará 2021 inteiro, esse luxo custaria caro em vidas.
Depois que uma vacina não-concorrente chegou no país, ainda temos problemas 3, 4, 5 iniciais. E mesmo não concorrendo com oferta pública, não é realista pensar que não geraria revolta assistir pessoas jovens e/ou pouco expostas se vacinando antes da lista pública só pq têm $$.
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Então uma boa resposta regulatória precisaria direcionar o setor privado para os grupos prioritários que têm mais risco ou estão mais expostos. Isso por si só diminuiria sensação de injustiça. Mas a sociedade pode querer acabar totalmente com o critério do dinheiro.
Algumas regras possíveis para esses fins: (1) Cada venda precisa ser acompanhada de 1/2/x doses gratuitas prioritárias (2) Vacina só para mesmo grupo prioritário público (3) Governo paga para ser gratuita e = pública
De novo, (3) é mais rígido, mas bem menos que proibir.
Poder-se-ia contra-argumentar que (3) seria a mesma coisa que requisitar + indenizar. Não é. Infraestrutura, logística e velocidade importam, trocar elas de mãos já é desperdiçar tempo. E em (3) pode-se negociar valores que mantenham incentivos para setor privado trazer mais.
Outro contra-argumento seria que estaríamos desperdiçando recursos públicos pagando mais acima do custo por vacinas. Mas lembrem que para setor público maior custo de todos é a pandemia do Covid. Pagar um pouco a mais para salvar vidas e acabar com a pandemia faria todo sentido.
Há uma infinidade de regras intermediárias entre essas que coloquei aqui e mais restritivas que opções (3). De novo, intenção não era dar resposta definitiva, mas apenas mostrar que é possível ir além de respostas simplórias e quem sabe melhorar qualidade do debate. Fim do fio.
Em economia temos conceito de bem comum, que é um bem rival e não-excludente. Exemplo: vagas na rua. Vacinas não são bem comum porque são excludentes. Se elas não tivessem propriedade da exclusão, não conseguiríamos criar a lista de priorização que diz quem pode recebê-las antes.
Dizer que vacinas são bem comum provavelmente se deve a uma confusão com a saúde dos outros ser bem público (não-rival e não-excludente). Viver numa população imunizada contra uma doença traz benefícios individuais que são não-rivais e não é possível excluir alguém de recebê-los.
Isso explica, por ex, por que é tão difícil lidar com movimento antivacina. Eles recusam a vacina, mas pegam carona (free-ride) no bem público que a vacina gera que é a imunidade coletiva. Se esse comportamento se generaliza, acaba destruindo o bem público da imunidade coletiva.
As vacinas mRNA (da Pfzer-BioNTech e da Moderna) são brilhantes no nível da ciência que têm por trás. O @WheatNOil fez um fio divertido em inglês explicando como elas funcionam, segue aqui minha tradução e entenda essa tecnologia INCRÍVEL 👇🧵
A primeira coisa a saber é como o seu sistema imune funciona. Basicamente, suas células de imunidade atacam qualquer coisa estranha que entra no seu corpo. Se elas veem uma proteína, um vírus, ou uma bactéria ou qualquer coisa que elas não reconhecem, elas lançam um ataque.
Por exemplo, se sistema imune está lutando contra vírus, ele demora para ter contra-ataque completo. Precisa entender qual parte do vírus atacar e então aumentar produção do que ele precisa para atacar essa parte. Pode levar dias. Enquanto isso, o vírus se multiplica e expande.
Com ciência e tecnologia, coisas que aterrorizavam nossos antepassados não existem mais. Daí alguns que sempre viveram no conforto esquecem do que esse bem-estar depende, por ex de VACINAS. Prepare o estômago e segue o fio para saber das doenças que matavam milhões antes delas 👇
VARÍOLA - a doença
Matava por volta de 30% dos infectados pelo vírus. Apenas no século 20, estima-se que a varíola tenha matado mais de 300 MILHÕES de pessoas. Crianças eram principais vítimas.
Na foto de 1901, criança não-vacinada (esq.) ao lado de criança vacinada.
VARÍOLA - a vacina
A 1ª vacina foi descoberta por Edward Jenner em 1796. Jenner investigou por que mulheres que tiravam leite de vacas não contraiam varíola. O gado sofria com variante menos letal da doença e se expor a essa variante criava imunidade contra a varíola humana.
Cenário apocalíptico pela Califórnia durante o grande incêndio que ocorre nas florestas. A tecnologia para prevenir incêndios dessa escala é antiga e dinheiro na Califórnia não falta. Então por que os incêndios voltam todos os anos? É mais complexo do que parece. Segue o fio 👇
1) Por que os incêndios acontecem? A maior umidade é no outono-inverno. Durante primavera e verão, falta de chuvas e alta temperatura secam a vegetação e folhas se acumulam no chão. É o combustível do incêndio. Falta só a fagulha.
2) A fagulha. Ela pode ter causas humanas, mas também há causas naturais e incontroláveis, como raios. Não falta combustível, então é previsível e só questão de tempo. Não por acaso muitas espécies da região tem sementes, folhas e raízes adaptadas ao ciclo de incêndios.
Em tempo de aumento do preço dos alimentos, muita gente lembrando que 70% dos alimentos consumidos no Brasil vem da agricultura familiar. Mas você sabia que essa informação é falsa? A história por trás desse número equivocado é um tanto curiosa. Segue 👇
Para começar, o que significa "70% dos alimentos", como se faz esse cálculo? É uma medida por unidade, por ex "70% das maçãs"? Ou uma medida em quilograma, por ex "70% das toneladas anuais de arroz"? Ou é uma medida por valor de produção, por ex "70% das vendas de feijão"? 👇
Resposta: ninguém sabe. A fonte original dessa estatística parece ter sido notícia em canais oficiais do governo entre 2011 e 2012, mas sem menção a qualquer estudo para avaliarmos qual foi metodologia utilizada. Ao que consta, sequer existe algum estudo por trás da afirmação. 👇
"Ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina", disse falsamente Bolsonaro. E a afirmação é falsa até se você for radicalmente contrário a imposições pelo governo, e até se você rejeitar também o argumento utilitarista de que isso promoveria o bem comum ao salvar vidas. Segue👇
Libertários radicais por vezes invocam o argumento de que a autonomia sobre nosso próprio corpo é um direito inviolável. Poucos chegam ao ponto de serem contrários à vacinação obrigatória, mas entre os anti-vacina o argumento é bem recebido. De toda forma, está equivocado. 👇
Na verdade o problema aqui não é com o direito de autonomia sobre o próprio corpo em específico, mas com outro princípio amplamente aceito por libertários e quase toda outra filosofia política: o princípio de evitar o dano aos outros. 👇