Quando afirmo a necessidade de ensaios clínicos randomizados (inclusive durante a pandemia) para demonstrar eficácia de medicamentos, eu ouço:
"André, é antiético usar placebo em um dos grupos". Ou "É antiético ficar parado e 'deixar o paciente morrer' ".
Será? Segue o fio..
Existe uma confusão enorme aí. A primeira é que assumiu-se ARBITRARIAMENTE que certos medicamentos funcionam. Ou seja, mesmo sem demonstração de eficácia, disseminou-se que ivermectina ou hidroxicloroquina eram eficazes. E já sabemos que isso é a inversão do método científico.
Como no imaginário popular do senso comum (que inclui muito profissionais da saúde 😢) foi popularizada a hipótese de que esses medicamentos funcionam, criou-se a falsa sensação de que fazer estudos com placebo ou não utilizar esses medicamentos na prática médica seria antiético.
Mas temos visto repetidamente que os grandes ensaios clínicos com alta qualidade metodológica e baixo risco de viés não demonstram eficácia desses medicamentos. Ausência de benefícios somada ao risco de várias consequências negativas = prejuízo. Mas isso vocês já sabem, certo?
Então deixa eu mostrar o que é antiético.
Código de ética da profissão Farmacêutica:
- Cap IV, artigo 15:
É vedado ao farmacêutico:
I. divulgar assunto ou descoberta de conteúdo inverídico;
III. promover publicidade enganosa ou abusiva da boa fé do usuário.
(continua)
IV. anunciar produtos farmacêuticos ou processos por meios capazes de induzir ao uso indiscriminado de medicamentos.
E o que tem de Farmácia anunciando Ivermectina na internet ou no próprio estabelecimento. Ou colegas fazendo a clássica "empurroterapia" com esses fármacos...
Código de Ética Médica:
É vedado ao Médico:
- Cap. V. Artigo 37: consultar, diagnosticar ou PRESCREVER por qualquer meio de comunicação em massa.
- Cap XIII. Artigo 112: Divulgar informação de forma sensacionalista, promocional ou de conteúdo inverídico.
(continua)
Artigo 113: Divulgar, fora do meio científico, processo de tratamento cujo valor ainda não esteja expressamente reconhecido cientificamente por órgão competente.
Mas o que vejo é muito médico prescrevendo e anunciando esses medicamentos em diversas lives e publicações...
Resumo: estamos rasgando nossos códigos de ética, em nome de uma suposta "autonomia".
E a omissão dos conselhos de classe em relação a tudo isso só escancara um corporativismo de quem prefere agradar seus associados a se preocupar com o objeto final do nosso cuidado: o paciente
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Estudos científicos são o melhor modo de nos aproximarmos de verdades na área da saúde e a melhor forma de fazer essas verdades serem reconhecidas.
E foi empregando o raciocínio científico que uma jovem enfermeira revolucionou o sistema de saúde vitoriano.
Vamos de historinha!
Na primavera de 1820 nascia Florence Nightingale, em uma privilegiada família britânica. Ao contrário do que se esperava de uma dama inglesa da época, Florence dedicou-se à enfermagem
Chocando ainda mais a sociedade (e os pais), foi trabalhar nos hospitais da Guerra da Crimeia
Em 1854, administrando como voluntária um hospital da Turquia, desconfiou que a sujeira, falta de saneamento e a comida estragada eram mais responsáveis pela morte de soldados do que os ferimentos de guerra.
Parece loucura, mas na época, ninguém pensava muito nisso...
"Eu tive COVID-19 e me recuperei graças ao tratamento com Kit-Covid".
Sinto informar que que a frase está incorreta. O certo seria: "Eu tive COVID-19 e me recuperei, APESAR do tratamento com Kit-Covid"
A boa notícia é que você é um duplo vencedor. Venceu a Covid e a iatrogenia.
Iatrogenia: alterações patológicas derivadas de intervenções médicas. No caso do uso de medicamentos, são os efeitos adversos e consequências negativas não intencionais.
Se tem uma coisa que aquele ensaio clínico da Colchicina nos mostrou (volta lá no meu feed ver o vídeo) é que no grupo placebo (que não tomou medicamento nenhum), apenas 6% dos pacientes foram hospitalizados e 0,04% foram a óbito sem utilizar medicamento (ou kit-covid nenhum).
R: É aquela que está sendo aplicada no seu bracinho.
Ficar comparando eficácia é tão infantil quanto comparar o tamanho de órgão genital. Pode parecer divertido, pode às vezes impressionar mas, no final, o que importa é saber usar.
Explicando melhor, obviamente a eficácia é importante. Mas como sempre tenho dito aqui, uma vez atingidos os requisitos mínimos para registro, o tamanho do efeito das vacinas serve muito mais para orientar o plano de imunização do que para ficar comparando.
As vacinas não são tratamentos individuais. Não estamos tratando cada pessoa que é vacinada. Vacina é um empreendimento coletivo. Nessa perspectiva, o paciente deixa de ser eu ou você. O paciente passa a ser uma população chamada Brasil. E esse "paciente" precisa ser vacinado.
Vamos falar desse artigo que blogueirinhos, médicos "fodões" e defensores ferrenhos da "terapia precoce" andam "enchendo a boca" pra citar como demonstração de eficácia...
Tradução "Base fisiopatológica e (Ir)racional para o tratamento precoce de Sars-Cov-2. O "(Ir)" é meu rs.
Esse é um artigo de "Revisão Narrativa".
André, o que é isso?
Artigos de Revisão são uma forma de pesquisa que tenta revisar um determinado tema e sintetizar o resultado de diversos estudos, com o objetivo de fundamentar melhor um determinado objetivo. Existem 2 tipos básicos:
1) Revisão Sistemática (RS): Tipo de revisão planejada para responder uma pergunta específica e que utiliza métodos explícitos e sistemáticos para identificar, selecionar e avaliar criticamente os estudos, e para coletar e analisar os dados destes estudos incluídos na revisão.
Como vocês gostaram da última historinha que contei, vou contar mais uma.
Sabe como surgiu o primeiro ensaio clínico controlado?
Parece papo chato, mas vem comigo que vou te contar como um ensaio clínico foi capaz de mudar o destino de uma nação. Curioso?
Então segue o fio!
Em 1744, George Anson retornou à Inglaterra após uma longa navegação de 4 anos. Foi um retorno triunfante após uma batalhas navais contra a Espanha. Apenas 4 de seus tripulantes morreram nesses embates. Porém cerca de 1.000 deles morreram por uma doença conhecida como escorbuto.
O médico William Clowes, que serviu a frota da rainha Elizabeth a descreveu:
"As gengivas apodreciam até as próprias raízes dos dentes, seu hálito tornava-se pestilento. Pernas frágeis e fracas, cheias de dores e feridas, com manchas roxas e avermelhadas".
Uma doença assustadora.
Vamos finalmente entender por que precisamos de ensaios clínicos randomizados para dizer se um tratamento funciona?
Spoiler: Não é médico famoso, político ou "tradição milenar" que garante essa eficácia.
Vem comigo que vou te contar uma historinha legal nesse fio.
Você certamente já ouviu falar de um "tratamento" bizarro de antigamente chamado Sangria. Ele consiste basicamente em cortar a pele, romper vasos sanguíneos para curar qualquer tipo de doença.
"Nossa André, que absurdo, quem é o idiota que acha que isso funciona?
Já chego lá...
A sangria começou lá na Grécia Antiga. Achavam que doenças eram causadas por desequilíbrio entre 4 fluidos: sangue, bile amaralea, bile negra e fleuma.
Como o sangue era associado à boa disposição, quando alguém ficava doente, pensavam que era porque o sangue tinha estagnado.