Quando uma terapia é comprovadamente ineficaz, só resta ao paciente experimentar os seus danos. E esses danos são vão mais além do que os descritos em bula.
São eles:
- Os efeitos colaterais individuais;
- Os efeitos colaterais coletivos.
Viés de comissão é a inabilidade de ficar inerte quando não há o que fazer. Em Medicina, esse viés é ilustrado por:
- Na linha de frente de uma pandemia, temos que prescrever tudo o que fizer sentido, mesmo que não haja comprovação científica ou que seja comprovadamente ineficaz.
Uma das narrativa que tentam justificar essa atitude é a de que a ciência é lenta e demoraria anos para que tivéssemos comprovações. Quem fala isso não conhece os exemplos:
- Dexametasona e estudo RECOVERY
- Vacinas para COVID.
Outra narrativa frequente é o mito do "médico artista", defendida por Risueño d'Amador em 1836: "o médico deve confiar em sua intuição, não em tratados mecânicos e estatísticas de saúde".
Naquela época, até o mecanicismo (que critico) era vanguardista.
Um parêntese irônico: 11 anos depois, Ignaz Semmelweis desafiou a intuição médica ao anunciar que a principal causa de morte de mulheres que acabaram de dar à luz era a má higiene dos médicos.
A simples lavagem de mãos reduzira a mortalidade de 18,3% para 1,2% (NNT de 6).
Para o "médico artista", o paciente é como uma escultura passiva. A relação entre ambos é paternalista e de obediência. O "médico artista" é onisciente e transmite um ar de "sensação de certeza e segurança".
É figurinha garantida em programas de TV e jornais por "promover saúde".
A "ilusão da certeza" é a primeira das más consequências da atitude paternalista dos médicos.
Soft skills, aparições em programas matinais de saúde e superconfiança infundada são mais valorizados do que a realidade incerta da nossa profissão. O leigo é uma vítima desse sistema.
O mito do "médico artista" também se baseia no mecanicismo:
Se há sentido em uma prescrição, então, ilusoriamente, é 100% eficaz e a morte só pode ter decorrido de erro médico (ou pela ausência de uma terapia).
Isso é falso e explicado pela história natural das doenças.
Na realidade, existem probabilidades de um doente sobreviver sem tratamento versus com tratamento.
O viés de comissão (médico e de médicos leigos) é também baseado no desconhecimento de que alguém já tinha chance de se curar e, com seu remédio, esta foi reduzida ou aumentada.
Se existem chances de sobreviver ou melhorar com e sem tratamento, é impossível saber, pela simples observação (seja do médico ou do leigo) se um tratamento impactou positiva ou negativamente na história natural da doença.
Para isso, deve existir método.
É a iliteracia médica, a prescrição "inocente" de remédios ineficazes (porque são inócuos) e a "ilusão da certeza" que acostumaram os leigos e os médicos leigos a:
- Vai deixar morrer em casa?
- Não vai passar nada?
- Nenhum exame, doutor?
- Vim pedir meu check-up anual.
Concluo enfatizando que a consequência de uma prescrição populista do tipo "mal não faz", ou qualquer tipo de estratégia que iluda o leigo e o médico leigo, é muito maior do que individual.
É uma das causas da ilusória e ultrapassada relação médico artista-paciente escultura.
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É tentador ser um médico mecanicista porque, como disse em outros posts, a ilusória sensação de certeza e de segurança passada por esse tipo de estratégia é muito cativante para atrair leigos e médicos leigos.
A imagem de onisciência e de alto conhecimento é chamativa.
Em uma discussão, se alguém usa pressupostos falsos para seus argumentos, estes argumentos serão também falsos porque estão fundamentados em mentira.
É apenas de pressupostos falsos que vive a turma do “eu apoio o tratamento precoce”.
Pressuposto do leigo e do médico leigo:
- Esse pessoal não sabe que existem 500 artigos sobre tratamento precoce e 1 chance em 20 bilhões que ela seja falsa.
- Vou mandar pra ele qualquer artigo da lista ou o link do c19study, HCQ meta ou qualquer um desses. Sem legenda.
Realidade:
- Não se prova uma hipótese por número, mas por qualidade de artigos. A maioria dos artigos dessa lista tem péssima qualidade e não tem poder confirmatório.
- Compartilhar c19study sendo médico é motivo de completa vergonha. É atestado de iliteracia ou má fé.
Está na hora de a gente se perguntar se parte da tragédia que estamos vivendo não pode estar vindo justamente do viés de comissão da maioria dos nossos médicos mecanicistas e leigos.
Em outras palavras: fazer mais do que o paciente precisa também causa dano.
O médico leigo, aquele que se informa por vídeos do Alexandre Garcia, tweets de “comentaristas políticos paranóicos de xadrez 4D” e pelo grupo Dignidade Médica no Facebook (é irônico porque lá não se vê dignidade nenhuma) é também o mesmo que não pensa que:
- Quando um remédio é ineficaz, sobra dele apenas os seus efeitos colaterais, danos e riscos.
A quantidade de pacientes que recebeu, por exemplo, anticoagulantes (até aqui apenas uma hipótese de baixa plausibilidade - mas na cabeça do mecanicista, só isso basta), é incontável.
Luis teve um diagnóstico que, segundo seu médico, precisa de cirurgia urgente.
Na verdade, ele teve um “overdiagnosis” e o seu tratamento desnecessário teve desfecho trágico.
Mesmo assim, Luis é grato e ilustra o proposto “viés do gato de Schrödinger”, que acabamos de publicar.
Aos 60 anos, assintomático, Luis foi impactado por esse diagnóstico em um inocente exame de check-up. Seu médico lhe explicou a gravidade e o mecanismo da doença e do seu tratamento cirúrgico.
Em um universo paralelo, Luiz, de 60 anos, não realizou este exame.
Como um bom espectador de programas matinais de saúde, Luis (com s) não pensou na possibilidade de:
- Exame falso positivo - grande problema dos check-ups
- Overdiagnosis - quando é diagnósticada uma doença que não levaria a sintomas ou morte
Um pouco sobre como funciona a Medicina de verdade (longe dos holofotes do Bem Estar, das discussões de Pingo nos is, das falsas promessas populistas e da estatística de jardim de infância)…
Uma breve história sobre o tratamento e a letalidade do infarto agudo.
Até a década de 50, a letalidade de um evento de infarto era de 35 - 45%.
Isso significa que 35-45 a cada 100 pacientes infartados morreriam por este evento e os demais sobreviveriam (com problemas sérios, mas sobreviveriam).
O tratamento da época era incapaz de reduzir isso.
Na época, os infartados eram reclusos em quartos longe dos postos de enfermagem (onde há mais barulho), porque havia alguma percepção (que se confirma) que os estímulos estressores poderiam lhes causar problemas.
Braunwald, autor do maior tratado de cardiologia, escreveu: