Um pouco sobre como funciona a Medicina de verdade (longe dos holofotes do Bem Estar, das discussões de Pingo nos is, das falsas promessas populistas e da estatística de jardim de infância)…
Uma breve história sobre o tratamento e a letalidade do infarto agudo.
Até a década de 50, a letalidade de um evento de infarto era de 35 - 45%.
Isso significa que 35-45 a cada 100 pacientes infartados morreriam por este evento e os demais sobreviveriam (com problemas sérios, mas sobreviveriam).
O tratamento da época era incapaz de reduzir isso.
Na época, os infartados eram reclusos em quartos longe dos postos de enfermagem (onde há mais barulho), porque havia alguma percepção (que se confirma) que os estímulos estressores poderiam lhes causar problemas.
Braunwald, autor do maior tratado de cardiologia, escreveu:
“Não era incomum [na minha época de residente] chegar à enfermaria às 06 da manhã para descobrir que um dos pacientes morrera tranquilo durante a madrugada”.
Mas Desmond Julian, um cardiologista, estava prestes a mudar isso com a simples, mas genial, ideia de criar as UCO.
Em 1960, contrariando o senso comum de que “cuidado não serve pra nada, importante é tomar remédio”, Desmond Julian deu o primeiro - e mais significativo - passo na redução desta letalidade:
a criação das Unidades Coronárias (UCO).
Ao contrário: vamos trazer os pacientes para perto das enfermeiras, e vamos treinar toda a equipe para entregar um suporte avançado de vida (ACLS) de qualidade. Foi simplesmente isso.
Com as UCO, a letalidade da doença caiu para 15% - menos que a metade de 35%.
Isso significa que, depois desse tratamento, a letalidade da doença caiu 20% de um valor prévio que era de 35%, ou seja, uma queda de 57% (20 é 57% de 35). Se interpreta que o risco RELATIVO de morrer de infarto caiu 57%.
Em valores absolutos, caiu 15% (35% - 20%).
O valor absoluto é importante para se calcular quantos pacientes precisam ir a UCOs (ou unidades similares com bons cuidados e gente treinada) para ser salvos por ação exclusiva da UCO:
100% / Redução absoluta = 100% / 15% = 6,6%, arredondando: 7.
Ou seja, a cada 7 pacientes que recebem bons cuidados, 1 é salvo por isso.
E os outros 6? Morrem?
Não! Você já viu que a letalidade não é de 100%. E também não é 0% (ainda é 15%).
Maior parte desses 6 (4, talvez) sobreviverá porque já sobreviveria mesmo e os outros 2 morrerão.
De 1986 em até 1988, grandes estudos confirmaram o benefício da Aspirina e do trombolítico para infarto, reduzindo a letalidade para algo em torno de 7%.
Vamos focar na Aspirina.
A aspirina, no clássico estudo ISIS-2, mostrou que o grupo que a usou teve mortalidade de 9,4% versus 11,8% do grupo placebo.
Isso significa uma redução absoluta de 2,4 pontos percentuais e redução relativa de 20,3% (2,4 é 20,3% de 11,8).
As pessoas que tomam remédios pensando que são curados pelo remédio e que, sem o remédio, não seriam curadas, não conseguem entender a magnitude disso.
Uma redução relativa de 23% de letalidade por um remédio barato e disponível como o AAS é um verdadeiro milagre.
Enquanto alguns estatísticos de twitter dizem que 50% de eficácia é jogar moeda pra cima, nós (médicos que conhecem seu papel limitado no processo saúde-doença) damos graças à existência da Aspirina e sua “eficácia” de 23%.
Significa que 23% das pessoas são salvas?
Não, cara pálida! A letalidade já era de 12% no estudo - se fosse assim teria aumentado de 12 para 77.
É de 23% a chance de morrer, então?
Também não! Já era 12%!
Significa que foi reduzida em 23% a chance de morrer (de 11,8 para 9,4)
A maioria das pessoas que repetem a história de que “com a vacina, temos 50% de chance de não pegar a doença” são as que pensam que a chance de alguém pegar a doença é de 100%.
Ou que a chance de morrer de infarto é de 100%.
Mesmo depois de Desmond Julian e as UCOs.
A redução absoluta (RAR) da letalidade com Aspirina foi de 2,4 pontos, como falei.
O que significa que 42 pacientes (100/RAR que é de 2,4) precisam receber Aspirina para que 1 vida seja salva por ela.
E os outros 41?
Alguns sobrevivem porque já iriam (lembre que a letalidade sem tratamento na década de 50 era 45%, nunca foi 100%).
Outros sobrevivem por causa do Desmond Julian e as UCOs.
Outros morrem mesmo assim (mesmo com AAS, a letalidade ainda ficou em 9,4%).
Bem vindos à Medicina da vida real. Aquela em que pessoas sérias discutem coisas sérias com outras pessoas sérias.
Obs: a letalidade de um evento de infarto em hospitais de referência ainda é, hoje (com UCOs, aspirina, trombólises e angioplastias), de 3,5%.
Corrigindo:
Isso significa que, depois desse tratamento, a letalidade da doença caiu 15% de um valor prévio que era de 35%, ou seja, uma queda de 57% (20 é 57% de 35). Se interpreta que o risco RELATIVO de morrer de infarto caiu 57%.
Em valores absolutos, caiu 20% (35% - 15%).
O NNT da UCO é 5, portanto (100 / 20).
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Luis teve um diagnóstico que, segundo seu médico, precisa de cirurgia urgente.
Na verdade, ele teve um “overdiagnosis” e o seu tratamento desnecessário teve desfecho trágico.
Mesmo assim, Luis é grato e ilustra o proposto “viés do gato de Schrödinger”, que acabamos de publicar.
Aos 60 anos, assintomático, Luis foi impactado por esse diagnóstico em um inocente exame de check-up. Seu médico lhe explicou a gravidade e o mecanismo da doença e do seu tratamento cirúrgico.
Em um universo paralelo, Luiz, de 60 anos, não realizou este exame.
Como um bom espectador de programas matinais de saúde, Luis (com s) não pensou na possibilidade de:
- Exame falso positivo - grande problema dos check-ups
- Overdiagnosis - quando é diagnósticada uma doença que não levaria a sintomas ou morte
Os 50% noticiados são de REDUÇÃO RELATIVA DE RISCO. Se era, digamos, de 10% o risco de pegar a doença, com a vacina, cai para 5%.
Não é cara ou coroa.
A showmicialização da vacina culminou nesse desastre de divulgação. Termos são usados de maneira errada.
Perde o debate limpo.
Pra quem tá falando que 50% é como cara ou coroa, experimente, um dia, ler um artigo científico. Você vai se assustar com o fato de que mesmo as melhores terapias não reduzem em 100% seus desfechos primários.
Ex: AAS reduz em 20% o risco relativo de morte vascular em infartos.
O valor de p é uma convenção mais vezes perigosa do que útil em pesquisas médicas porque significa a chance de que os resultados daquela amostra tenham sido encontrados ao acaso. Se p < 0,05 (5%), então alguns médicos aceitam esse resultado e compartilham o estudo pelo zipzop. +
O que não se diz sobre o valor de p?
- Que quanto mais manipulada, fora do usual ou enviesada for a pesquisa, maior a chance de obter valor de p significativo.
- Que deve ser visto como um intermediário da resposta final, não como “encerrador de questão”.
Para exemplificar, imagine que eu quero introduzir um novo fármaco no tratamento do COVID. É uma ótima oportunidade porque isso é uma mina de ouro: basta fazer um post com alguma aparência técnica no Instagram inventando um mecanismo e dizendo que encontrei a cura - sucesso.
Sabe quando você é criança e pede aos seus pais que comprem algo, eles falam que não têm dinheiro e você soluciona isso com “é só fazer um cheque” ou “é só passar no cartão”?
Difícil explicar isso pra criança né?
Mesma coisa com isso aqui. Evidência de jardim de infância. +
O gráfico multiplica os valores de p dos estudos e chega à conclusão de que há uma chance em 910 bilhões de que 148 estudos + sejam falsos.
Bem, vamos lá tentar explicar pra uma criança o que é inflação…
Ou “por que 148 estudos mostrando que lixo é ouro não fazem do lixo, ouro”.
Em primeiro lugar: nenhum desses ditos 148 estudos positivos tem força suficiente para confirmar uma hipótese. Não é número de estudos, mas a força deles. Tenho sempre falado aqui: todos os estudos randomizados, controlados e cegos que testaram a HCQ falharam.
Certa vez fui interpelado aqui no twitter por uma pergunta ao mesmo tempo ingênua e extremamente reflexiva. O seguidor perguntou: “por que cardiologistas morrem do coração?”.
Então fiz esse fio para falar sobre como lidar com as expectativas irrealistas de pacientes.
Certamente, não é uma dúvida só dele. Seccionando a questão, ficaria assim: (a) Se vocês sabem fazer a prevenção, (b) se vocês têm terapias que comprovadamente salvam vidas , por que morrem mesmo assim?
Bem, a verdade é que (e isso não se aplica só à cardiologia):
a) Não sabemos inteiramente como fazer a prevenção. Algumas estratégias indicadas hoje são ineficazes, como mostram alguns estudos modernos. Os exames estão longe de serem acurados e tão são simples como “positivo” e “negativo”. Há exames “famosos” com > 90% de resultados falsos.
Eis que acordo com um presente: alguém me pergunta “qual a evidência que o tratamento precoce não funciona?”
A resposta óbvia (que não passa pela cabeça dele) é outra pergunta: qual a evidência que funciona?
Descontruindo, nesse fio, o tal “estudo do Pierre Kory” e a ivermectina.
Algumas considerações: 1. Por favor, parem de inverter o ônus da prova. É tão simples: se não há evidência de benefício, não peçam evidência de falta de benefício. Não é assim que ciência funciona. 2. Não ache que sabe interpretar evidências por saber que p < 0,05 é significativo
O que é o “estudo” (entre aspas) do Pierre Kory? R: uma tentativa falha de fazer uma revisão sistemática. Por que falha?
Porque, como o nome diz, revisões sistemáticas devem sistematizar a maneira como se incluem estudos nessa revisão.
É um pressuposto de revisões sérias.