Luis teve um diagnóstico que, segundo seu médico, precisa de cirurgia urgente.
Na verdade, ele teve um “overdiagnosis” e o seu tratamento desnecessário teve desfecho trágico.
Mesmo assim, Luis é grato e ilustra o proposto “viés do gato de Schrödinger”, que acabamos de publicar.
Aos 60 anos, assintomático, Luis foi impactado por esse diagnóstico em um inocente exame de check-up. Seu médico lhe explicou a gravidade e o mecanismo da doença e do seu tratamento cirúrgico.
Em um universo paralelo, Luiz, de 60 anos, não realizou este exame.
Como um bom espectador de programas matinais de saúde, Luis (com s) não pensou na possibilidade de:
- Exame falso positivo - grande problema dos check-ups
- Overdiagnosis - quando é diagnósticada uma doença que não levaria a sintomas ou morte
Luis coloca broche rosa em novembro.
Com um bom médico mecanicista (leigo e frágil), o médico de Luis também não pensou nessas possibilidades.
Por muitos anos ele realiza essa cirurgia com boas taxas de sucesso - apenas 5% das pessoas morrem em decorrência dela.
“Um bom preço a se pagar”, Luis pensa.
Luis, infelizmente, foi um desses 5%. O luto pela perda precoce do provedor da família é aliviado pela sensação de tragédia quase acidental.
A gratidão pelo médico e pela terapia só existe porque eles não conhecem o Luiz (com z), que vive em um universo paralelo.
Luiz (com z) tem exatamente o mesmo corpo e, portanto, a mesma condição. Mas não fez check-ups e nunca descobriu aquela “doença”. Passava férias todos os anos na Itália e se aposentou em Cascais, Portugal, onde morreu aos 93 anos.
Overdiagnosis, como disse, é quando é diagnosticada uma doença que, apesar de existir de verdade, não levaria à morte, pois não progride.
Se esse termo é novidade para você, leigo, talvez você precise parar de assistir TV. E pra você, médico, bem vindo à Medicina do mundo real.
A cultura médica atual é potencializada por (a) noticiários recheados de falsas promessas (superficiais e inacuradas); (b) médicos charlatões e frágeis e; (c) leigos que pensam ter aprendido algo com (a) e (b).
É uma cultura de super-confiança e alta ignorância.
O leigo e o médico leigo são incapazes de pensar de maneira probabilística e têm uma visão determinista da Medicina: uma doença passa na TV como muito letal - o que não passa na TV são suas nuances, as possibilidades de falso-positivo e overdiagnosis, a eficácia da terapia, etc…
Por essa super-confiança gerada pela Medicina predatória (o médico do consultório ao lado oferece check-up e faz boas propagandas dele), pela super-judicialização da Medicina e pela iliteracia estatística, é que não pensamos no “e se…?”. Não pensamos no Luiz (com z).
Imaginando agora que Luis sobreviveu àqueles 5% de chance de morte da cirurgia:
- Ainda maior gratidão por parte da família e do próprio Luis.
- Ninguém convence Luis e família de que passar por esse risco foi desnecessário porque ele não conhece o Luiz.
A ausência do pensamento contrafactual em Medicina é o que nomeamos de "viés do Gato de Schrödinger" - em homenagem à ilustração de um experimento em que um gato vive realidades diferentes em uma caixa.
Favorece os meses coloridos, os tratamentos ineficazes e o charlatanismo.
O viés que propusemos desfavorece as pesquisas médicas e a Medicina séria, que passa a trabalhar "contra a opinião pública" por estar simplesmente buscando soluções para melhorar esta péssima espiral em que estamos.
Agradeço ao @EduardoFarina10 e à Maria Catarina Sampaio por me ajudarem a escrever esse manuscrito e no processo de publicação. Parabéns aos dois! Seu trabalho foi essencial.
DOI: 10.7759/cureus.12697
Correção:
Eu gosto tanto dos meses coloridos que errei o mês: Luis usa broche rosa em outubro.
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Um pouco sobre como funciona a Medicina de verdade (longe dos holofotes do Bem Estar, das discussões de Pingo nos is, das falsas promessas populistas e da estatística de jardim de infância)…
Uma breve história sobre o tratamento e a letalidade do infarto agudo.
Até a década de 50, a letalidade de um evento de infarto era de 35 - 45%.
Isso significa que 35-45 a cada 100 pacientes infartados morreriam por este evento e os demais sobreviveriam (com problemas sérios, mas sobreviveriam).
O tratamento da época era incapaz de reduzir isso.
Na época, os infartados eram reclusos em quartos longe dos postos de enfermagem (onde há mais barulho), porque havia alguma percepção (que se confirma) que os estímulos estressores poderiam lhes causar problemas.
Braunwald, autor do maior tratado de cardiologia, escreveu:
Os 50% noticiados são de REDUÇÃO RELATIVA DE RISCO. Se era, digamos, de 10% o risco de pegar a doença, com a vacina, cai para 5%.
Não é cara ou coroa.
A showmicialização da vacina culminou nesse desastre de divulgação. Termos são usados de maneira errada.
Perde o debate limpo.
Pra quem tá falando que 50% é como cara ou coroa, experimente, um dia, ler um artigo científico. Você vai se assustar com o fato de que mesmo as melhores terapias não reduzem em 100% seus desfechos primários.
Ex: AAS reduz em 20% o risco relativo de morte vascular em infartos.
O valor de p é uma convenção mais vezes perigosa do que útil em pesquisas médicas porque significa a chance de que os resultados daquela amostra tenham sido encontrados ao acaso. Se p < 0,05 (5%), então alguns médicos aceitam esse resultado e compartilham o estudo pelo zipzop. +
O que não se diz sobre o valor de p?
- Que quanto mais manipulada, fora do usual ou enviesada for a pesquisa, maior a chance de obter valor de p significativo.
- Que deve ser visto como um intermediário da resposta final, não como “encerrador de questão”.
Para exemplificar, imagine que eu quero introduzir um novo fármaco no tratamento do COVID. É uma ótima oportunidade porque isso é uma mina de ouro: basta fazer um post com alguma aparência técnica no Instagram inventando um mecanismo e dizendo que encontrei a cura - sucesso.
Sabe quando você é criança e pede aos seus pais que comprem algo, eles falam que não têm dinheiro e você soluciona isso com “é só fazer um cheque” ou “é só passar no cartão”?
Difícil explicar isso pra criança né?
Mesma coisa com isso aqui. Evidência de jardim de infância. +
O gráfico multiplica os valores de p dos estudos e chega à conclusão de que há uma chance em 910 bilhões de que 148 estudos + sejam falsos.
Bem, vamos lá tentar explicar pra uma criança o que é inflação…
Ou “por que 148 estudos mostrando que lixo é ouro não fazem do lixo, ouro”.
Em primeiro lugar: nenhum desses ditos 148 estudos positivos tem força suficiente para confirmar uma hipótese. Não é número de estudos, mas a força deles. Tenho sempre falado aqui: todos os estudos randomizados, controlados e cegos que testaram a HCQ falharam.
Certa vez fui interpelado aqui no twitter por uma pergunta ao mesmo tempo ingênua e extremamente reflexiva. O seguidor perguntou: “por que cardiologistas morrem do coração?”.
Então fiz esse fio para falar sobre como lidar com as expectativas irrealistas de pacientes.
Certamente, não é uma dúvida só dele. Seccionando a questão, ficaria assim: (a) Se vocês sabem fazer a prevenção, (b) se vocês têm terapias que comprovadamente salvam vidas , por que morrem mesmo assim?
Bem, a verdade é que (e isso não se aplica só à cardiologia):
a) Não sabemos inteiramente como fazer a prevenção. Algumas estratégias indicadas hoje são ineficazes, como mostram alguns estudos modernos. Os exames estão longe de serem acurados e tão são simples como “positivo” e “negativo”. Há exames “famosos” com > 90% de resultados falsos.
Eis que acordo com um presente: alguém me pergunta “qual a evidência que o tratamento precoce não funciona?”
A resposta óbvia (que não passa pela cabeça dele) é outra pergunta: qual a evidência que funciona?
Descontruindo, nesse fio, o tal “estudo do Pierre Kory” e a ivermectina.
Algumas considerações: 1. Por favor, parem de inverter o ônus da prova. É tão simples: se não há evidência de benefício, não peçam evidência de falta de benefício. Não é assim que ciência funciona. 2. Não ache que sabe interpretar evidências por saber que p < 0,05 é significativo
O que é o “estudo” (entre aspas) do Pierre Kory? R: uma tentativa falha de fazer uma revisão sistemática. Por que falha?
Porque, como o nome diz, revisões sistemáticas devem sistematizar a maneira como se incluem estudos nessa revisão.
É um pressuposto de revisões sérias.