É tentador ser um médico mecanicista porque, como disse em outros posts, a ilusória sensação de certeza e de segurança passada por esse tipo de estratégia é muito cativante para atrair leigos e médicos leigos.
A imagem de onisciência e de alto conhecimento é chamativa.
Problema é que uma intervenção em uma via metabólica específica pode iniciar uma cadeia de eventos que neutralizam (tornando ineficaz) ou potencializam (tornando danoso) o mecanismo proposto.
É como achar que consertar a entrada da Ponte Cidade Jardim vai resolver São Paulo.
Fora isso, não mapeamos por completo o nosso sistema metabólico. A sensação de certeza que temos ao dirigir usando o Waze só existe porque nós criamos as avenidas e o Waze.
Com o corpo humano, não é assim. Nem sabemos o quanto ainda precisamos mapear.
Pois bem, a conclusão é que o Mecanicismo (esse estilo de abordagem médica do print) está morto.
Está morto porque, já há muitos anos, podemos nos beneficiar da Medicina Baseada em Evidências (MBE), que desde o seu surgimento, negou diversos desses mecanismos lógicos.
O poder que a MBE possui para desbancar esses mitos é testar, em um universo macroscópico (o dos desfechos observáveis a olho nu), a soma dos efeitos positivos e deletérios de uma droga usando o melhor método possível.
A humildade imposta por esse sistema assusta o médico "onisciente" e paternalista que já descrevi em outros posts.
É difícil para o médico assumir diante dos seus pacientes tão mal-acostumados que, no fundo, ele não sabe o que está fazendo (e que não sabe sequer ler um artigo).
O mecanicismo deve ser usado, atualmente, para gerar hipóteses. Quanto mais plausível for a ideia, mais provavelmente acreditaremos em um eventual resultado positivo de um estudo clínico.
É pontapé inicial das eliminatórias, não é o gol da final da copa do Mundo.
Como falei, a atratividade de um discurso como aquele gera popularidade (assim como toda mentira populista). Leigos e médicos leigos são presas fáceis (o autor do texto tem >800k presas). Cliques são garantidos. Venda de ruído jornalístico também.
O exemplo do Ginko biloba.
Apesar das propagandas mecanicistas, ilusórias e cheias de falsas esperanças, a verdade é que isso é apenas o que é: uma ilusão.
O processo de iludir pode ser ativo, no caso de médicos charlatões; ou passivo, no caso de leigos e médicos leigos.
Em um estudo robusto (daqueles que não existem para as drogas de mentirinha de COVID, mas sim para Dexametasona e vacinas), o Ginko Biloba mostrou ser apenas desperdício de dinheiro.
Fatos não se importam com a sua crença.
Compare a data do estudo com a data da publicação da Veja
Como você pode perceber, é fácil, para o médico, seguir esse caminho, porque é cheio de louros. É muito bom ser o cara das falsas esperanças.
Leigos e médicos leigos (as vítimas desse sistema alimentado por charlatões e laboratórios) retro-alimentam a perversidade do sistema.
Após a comprovação de uma "Medical Reversal", que é quando se comprova a ineficácia de uma terapia previamente dita eficaz (seja por mecanicismo puro, ou por estudos fracos), pode levar mais de 10 anos para que os médicos parem de prescreve-la. Outras vezes, pode nunca ocorrer.
Por que?
- O mecanicismo, infelizmente, ainda existe e é super valorizado na nossa sociedade;
- O populismo do mecanicismo é tentador;
- Somos inerentemente avessos a mudanças;
- O sistema (laboratórios, farmácias, charlatões e médicos leigos) lucra com terapias ineficazes.
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Quando uma terapia é comprovadamente ineficaz, só resta ao paciente experimentar os seus danos. E esses danos são vão mais além do que os descritos em bula.
São eles:
- Os efeitos colaterais individuais;
- Os efeitos colaterais coletivos.
Viés de comissão é a inabilidade de ficar inerte quando não há o que fazer. Em Medicina, esse viés é ilustrado por:
- Na linha de frente de uma pandemia, temos que prescrever tudo o que fizer sentido, mesmo que não haja comprovação científica ou que seja comprovadamente ineficaz.
Uma das narrativa que tentam justificar essa atitude é a de que a ciência é lenta e demoraria anos para que tivéssemos comprovações. Quem fala isso não conhece os exemplos:
- Dexametasona e estudo RECOVERY
- Vacinas para COVID.
Em uma discussão, se alguém usa pressupostos falsos para seus argumentos, estes argumentos serão também falsos porque estão fundamentados em mentira.
É apenas de pressupostos falsos que vive a turma do “eu apoio o tratamento precoce”.
Pressuposto do leigo e do médico leigo:
- Esse pessoal não sabe que existem 500 artigos sobre tratamento precoce e 1 chance em 20 bilhões que ela seja falsa.
- Vou mandar pra ele qualquer artigo da lista ou o link do c19study, HCQ meta ou qualquer um desses. Sem legenda.
Realidade:
- Não se prova uma hipótese por número, mas por qualidade de artigos. A maioria dos artigos dessa lista tem péssima qualidade e não tem poder confirmatório.
- Compartilhar c19study sendo médico é motivo de completa vergonha. É atestado de iliteracia ou má fé.
Está na hora de a gente se perguntar se parte da tragédia que estamos vivendo não pode estar vindo justamente do viés de comissão da maioria dos nossos médicos mecanicistas e leigos.
Em outras palavras: fazer mais do que o paciente precisa também causa dano.
O médico leigo, aquele que se informa por vídeos do Alexandre Garcia, tweets de “comentaristas políticos paranóicos de xadrez 4D” e pelo grupo Dignidade Médica no Facebook (é irônico porque lá não se vê dignidade nenhuma) é também o mesmo que não pensa que:
- Quando um remédio é ineficaz, sobra dele apenas os seus efeitos colaterais, danos e riscos.
A quantidade de pacientes que recebeu, por exemplo, anticoagulantes (até aqui apenas uma hipótese de baixa plausibilidade - mas na cabeça do mecanicista, só isso basta), é incontável.
Luis teve um diagnóstico que, segundo seu médico, precisa de cirurgia urgente.
Na verdade, ele teve um “overdiagnosis” e o seu tratamento desnecessário teve desfecho trágico.
Mesmo assim, Luis é grato e ilustra o proposto “viés do gato de Schrödinger”, que acabamos de publicar.
Aos 60 anos, assintomático, Luis foi impactado por esse diagnóstico em um inocente exame de check-up. Seu médico lhe explicou a gravidade e o mecanismo da doença e do seu tratamento cirúrgico.
Em um universo paralelo, Luiz, de 60 anos, não realizou este exame.
Como um bom espectador de programas matinais de saúde, Luis (com s) não pensou na possibilidade de:
- Exame falso positivo - grande problema dos check-ups
- Overdiagnosis - quando é diagnósticada uma doença que não levaria a sintomas ou morte
Um pouco sobre como funciona a Medicina de verdade (longe dos holofotes do Bem Estar, das discussões de Pingo nos is, das falsas promessas populistas e da estatística de jardim de infância)…
Uma breve história sobre o tratamento e a letalidade do infarto agudo.
Até a década de 50, a letalidade de um evento de infarto era de 35 - 45%.
Isso significa que 35-45 a cada 100 pacientes infartados morreriam por este evento e os demais sobreviveriam (com problemas sérios, mas sobreviveriam).
O tratamento da época era incapaz de reduzir isso.
Na época, os infartados eram reclusos em quartos longe dos postos de enfermagem (onde há mais barulho), porque havia alguma percepção (que se confirma) que os estímulos estressores poderiam lhes causar problemas.
Braunwald, autor do maior tratado de cardiologia, escreveu: