Bom dia. Farei o fio que prometi há pouco sobre as dificuldades para criarmos mobilizações mais constantes nos últimos dois anos. Tem relação com esta manchete do portal UOL que afirma que a oposição defende protocolarmente o impeachment, mas aposta no desgaste de Bolsonaro.
1) Desde abril de 2017, quando as centrais sindicais lideraram a maior greve geral da nossa história, as mobilizações do campo progressista brasileiro se tornaram intermitentes: mobilizações estudantis, carreatas, greve de trabalhadores de aplicativos ou manifestação das torcidas
2) Embora a provisoriedade seja uma marca das mobilizações e engajamentos sociais deste século XXI, o Brasil parece apresentar um sintoma mais agudo desse fenômeno: de 2017 para cá, as mobilizações populares são cada vez mais inconstantes e não geram uma liderança nacional
3) Há algo relacionado com uma nova cultura política, mais individualista, mais imediatista e plasmada na lógica das redes sociais (impressionistas, fragmentadas e intermitentes).
4) Mas há, ainda, questões históricas (estruturais e conjunturais). Vou apresentar um rol de hipóteses nesta direção: a) profunda alteração na lógica de organização popular; b) Governos lulistas alteraram a lógica de conquista de direitos, diminuindo a capacidade de mobilização;
Peço desculpas pela interrupção. Tive que participar de uma reunião com os outros diretores do Instituto Cultiva (que presido). Continuo o fio:
5) (continuando o rol de hipóteses): c) grande parte dos movimentos sociais foram se fechando ao longo dos anos 1990, perderam financiamento e acabaram se estruturando como organizações, com estrutura administrativa própria e corpo dirigente fixo e profissionalizado
6) d)as universidades, antes polos de ação progressista, a despeito de tentativas esparsas de núcleos ou centros de pesquisa e extensão, não aparecem de maneira constante e militante
e)No caso das ONGs, grande parte passou a viver de convênios, terceirizando serviços estatais.
7) Esta nova realidade gerou uma profunda alteração do perfil das organizações do que se denominava de campo popular (denominação iniciada nos anos 1970).
8) No caso específico das gestões lulistas, gostaria de aprofundar o ideário de Lula. Acredito que discutimos pouco as características da estratégia política deste que, ainda hoje, é referência nacional da esquerda e lutas populares. Tentarei fazer uma breve digressão.
9) Lula tem uma formação neocorporativa. O neocorporativismo é uma ampliação do corporativismo sindical para a participação na formulação da agenda nacional estatal. O conceito nasceu da participação das centrais sindicais europeias de fóruns de concertação de agendas nacionais
10) Ao assumir o governo, Lula leva essa concepção para a lógica estatal e enquadra ONGs, organizações populares e movimentos sociais: cada demanda específica endereçada para uma agência estatal. Na prática, segmentou e especializou as demandas e negociações
11) O lulismo também gerou uma maior dependência da sociedade civil em relação aos recursos públicos. Há situações de ONGs que passaram a depender de convênios ou termos de cooperação assinados com governos que alteraram sua dinâmica interna (gerentes de projetos com muito poder)
11) Outro impacto das gestões lulistas sobre a lógica das organizações populares foi cooptar lideranças locais e/corporativas como gestores públicos: conselheiros de estatais, gestores de fundos de pensão, gestores de ministérios e programas.
12) A "segunda geração" de lideranças sociais que sucedeu à que ingressou no Estado durante o lulismo não tinha a maturidade política da anterior. O grau de especialização e gerencialismos que inundou as organizações populares foi cavalar.
13) A visão gerencialista colocou a saúde das organizações no centro das preocupação das lideranças (não a luta por direitos), a preparação e discurso técnicos como prioridade (não a capacidade de mobilização) e adotou modelos de planejamento mais rígidos e funcionalistas.
14) Lembro de uma dura discussão entre assessores e dirigentes sindicais quando, nos anos 1990, o Planejamento Estratégico Situacional (PES) virou moda no Brasil. O PES foi elaborado por um ex-ministro de Allende (Chile), mas sua orientação teórica não tinha foco na luta política
15) A teoria funcionalista leva este nome porque compreende cada elemento de uma organização (ou sociedade) com uma função ou funcionalidade para a saúde da própria organização. Não parte do conflito como lógica de disputa política, mas o equilíbrio institucional.
16) O PES é todo fundamentado nos conceitos funcionalistas ou de funcionalidade de cada componente da organização (não da sociedade). A discussão com dirigentes sindicais em meados dos anos 1990 foi intensa, mas não alterou a decisão política já tomada.
17) Enfim, se há elementos conjunturais que dificultam mobilizações mais constantes e cumulativas - como a pandemia e o comando político nacional do Centrão -, há elementos estruturais que limitam as organizações populares - fragmentação do mercado de trabalho ou o modelo lulista
18) Termino postando como ilustração a mudança da cultura política dos brasileiros. A primeira ilustração é de uma pesquisa realizada em 2013: brasileiros divididos em três terços (esquerda, centro e direita)
19) Já em 2020, uma nova pesquisa indicou algo muito diferente: metade dos brasileiros não tinha qualquer identidade ideológica. A duas décadas anteriores cobravam o seu preço. (FIM)

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14 Feb
MOBILIZAÇÕES

A Campanha Nacional Fora Bolsonaro apontou o domingo, 21 de fevereiro, como próxima data de mobilização nacional em defesa da vacinação para todos, da volta do auxílio emergencial, contra o desemprego e a fome e pelo impeachment de Jair Bolsonaro.
Capitais e cidades de todo o país deverão realizar ações no sábado, dia 20, ou no domingo, 21, buscando o diálogo com a população e a visibilidade da luta pelo fim do governo assassino de Jair Messias Bolsonaro, que já conta com 68 pedidos de impeachment protocolados na Câmara
A orientação da campanha, a exemplo das ações já realizadas neste ano, é de que sejam evitadas as aglomerações e sejam realizadas carreatas, bicicleatas e atividades simbólicas que dêem visibilidade para nossas bandeiras unitárias respeitando as regras de segurança sanitária.
Read 5 tweets
14 Feb
Não sei se já assistiram a minissérie Inacreditável. Descobri que cheguei tarde porque minha esposa já havia assistido.Trata-se de um caso real - baseado no livro "Falsa acusação: Uma história verdadeira"-, envolvendo uma jovem acusada de fazer uma falsa denúncia de estupro.
A série consegue nos fazer compreender a angústia dessa jovem, durante toda vida abandonada à própria sorte, cedendo ao ceticismo de policiais homens. Até que duas investigadoras desvendam outros casos de estupro. O primeiro episódio foi ao ar em setembro de 2019.
Foi indicada para Prêmio Emmy do Primetimee ganhou o prêmio Critics Choice Television Award de Melhor Atriz Secundária em Filme ou Minissérie, dentre outros.
Read 4 tweets
12 Feb
Boa tarde. Farei um fio sem tanta informação ou conceito a respeito da disputa política no mundo real dos governos e direções partidárias. Há um mito que está sendo propagado aqui nas redes sociais sobre a tal unidade de forças ideológicas. Um sonho que raramente ocorre. Lá vai
1) Eu milito na política desde os 15 anos de idade. Tenho, portanto, 43 anos de experiência neste terreno, fora os anos de analista profissional, como cientista político. Meu pai foi liderança política em seu município e na área profissional (foi dirigente da APCD)
2) Meu avô era colaborador do PSB das antigas e outros parentes do PCB. Enfim, cresci no meio. O que posso adiantar é que essa história de unidade entre forças ideológicas de um mesmo campo é um mito que só ocorre em ano bissexto. Um devaneio de quem nunca atuou na política
Read 16 tweets
2 Feb
Lá vai o fio que prometi sobre o que podemos esperar depois das eleições das presidências da Câmara dos Deputados e do Senado ontem à noite:
1) Começo afirmando que Bolsonaro está cada vez mais nas mãos do Centrão, bloco político dominante da política institucional brasileira. Li um texto publicado pela Carta Capital que me pareceu totalmente desconectado dos fatos
2) Lembremos a situação atual de Bolsonaro: a) seus filhos não estão mais no centro dos acontecimentos políticos do país; b) Sara Winter e os 300 - seu QAnon tupiniquim - foram varridos do cenário nacional; c) os ministros "ideológicos" estão para serem substituídos.
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26 Jan
Socializo, em seguida, a "Nota sobre Retorno às Aulas Presenciais" elaborada pelo Pacto Educativo Global do Brasil (iniciativa mundial liderada pelo Papa Francisco). Segue o fio.
1) 1.As bases técnicas para o retorno às aulas presenciais

A orientação de especialistas da área de saúde indica que sem redução drástica do número de infectados pela COVID19, o retorno presencial das aulas se torna inviável, dado o alto risco de contaminação.
2) A Fundação Oswaldo Cruz, órgão do Ministério da Saúde, publicou o documento com o título “Contribuições para o retorno às atividades escolares presenciais no contexto da pandemia Covid-19”, de setembro/2020
Read 41 tweets
26 Jan
Boa tarde. Vou postar um fio sobre o que considero traços paradoxais de nossa cultura política. Algo que alia alegria excessiva, resiliência doentia e violência privada. Lá vai:
1) O sociólogo polonês Zygmunt Bauman, num ensaio que dedicou às suas filhas, em determinado momento escreveu: “não posso evitar a história”. Afirmava que a história havia decretado que ele era polonês e judeu e, com tais imposições arbitrárias, emergia uma alta dose de incerteza
2) Quando li essas palavras que parecem uma narração realista, pensei no decreto que a história acabou impondo a todos nós, brasileiros. Bauman sabia que não nascemos com essência, já que nossa inteligência nos “decreta” que somos responsáveis por nossas escolhas e omissões.
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