Um dos argumentos mais utilizados por quem defende remédios “me engana que eu gosto” para COVID é o de que países que adotaram essas medidas ilusórias e populistas estão lidando bem com a pandemia.

Concluir risco individual através de dados de grupos é a falácia ecológica. Fio.
Estudos do tipo ecológico (que comparam países com países, por exemplo) são baratos e rapidamente realizáveis.
O estudo da BCG e COVID, por exemplo, levou 1 dia para ser escrito.
Também são de fácil interpretação para um leigo e, por isso, possuem forte apelo midiático e popular
Baseado em estudos ecológicos, foi possível desenhar este gráfico, por exemplo.
Está demonstrado que os países que promovem Ivermectina têm menor taxa de morte/casos que os que não promovem.
Também este outro gráfico que infere que em países onde a HCQ está banida ou desencorajada, há uma maior taxa de morte/casos.
Fique você sabendo que essa é apenas mais uma das maneiras que as pessoas mal-intencionadas (do tipo que alimenta sites que multiplicam valores de p) usam para enganar os leigos e médicos leigos (do tipo que compartilham, alheios à ignorância, sites que multiplicam valor de p).
A falácia ecológica acontece na comparação entre grupos porque não se pode tirar conclusões individuais pelo comportamento ou risco de um grupo. E as razões para isso são várias.
1. A história da BCG, por exemplo: países que administram essa vacina rotineiramente são também países mais pobres, com um estado mais fraco (sujeito a populismos), pior ensino (sujeitos à iliteracia), populações mais jovens.

No fim, o responsável é a BCG ou os demais fatores?
2. Referência é tudo. Basta mudar a referência de “taxa de mortos/casos” para “novas mortes diárias por milhão” que aquele gráfico altamente compartilhável em grupos de família de Zipzop se transforma nisso:
(Países que promovem Ivermectina possuem mais mortes diárias/milhão)
Ah, mas por que alguém mudaria a referência?
Porque cada referência possui sua vantagem e desvantagem.
A taxa de mortes/casos, por exemplo, privilegia países que testam pouco ou com sistema de saúde falho. Esses países são exatamente os mais pobres, ignorantes e iludíveis.
3. Não sabemos de tudo o que ocorre em um país. Imagine que um desses “países que promove mentiras” e se gaba por ter baixa taxa de mortos tem, internamente, uma letalidade maior entre os enganados que entre os não enganados. Só que essa estatística interna não foi divulgada?
Neste gráfico, por exemplo, como posso excluir que, na Itália, os pacientes que usaram HCQ são justamente os responsáveis por esta alta letalidade?

Pois é. Não posso. Faltam dados. E se faltam dados, eu não devo passar vergonha compartilhando.
4. Estudos ecológicos podem não ser ajustados para confundidores. Sabe a África e o “enorme sucesso da Ivermectina” por lá? É também o continente com menor média de idade (pela extrema pobreza).
E jovens possuem um menor risco de morrer por COVID.
Ivermectina ou juventude?
5. Paradoxo de Simpson. Esse é um brinde. Uma razão para que você aprenda que não se tira conclusões baseado em estudos ecológicos.
Ocorre quando uma relação causal é vista em vários subgrupos, mas, quando somados, essa relação deixa de existir.
Um exemplo desse paradoxo ocorreu aqui:
Perceba que a taxa de morte/casos é maior em cada faixa etária da população Chinesa.
Mas, quando somou-se ao total, a Itália é que possui uma maior taxa.
Razão pela qual a China e outros países populosos tendem a ter bons números relativos
O que ocorreu ali foi o fato de que porcentagens (números relativos) escondem os números absolutos.
Enquanto a maior parte dos casos na China ocorreu na idade de 30-59 anos, a maior parte dos casos na Itália ocorreu em > 60 anos.
Quando se dá a taxa global, esse dado se esconde
O que fazer diante de tudo isso?
Passo 1: se sua crença foi atingida pelo meu post, não ataque o mensageiro. Tudo escrito aqui pode ser facilmente encontrado em um livro de Medicina Baseada em Evidências (sugiro esperar pelo meu, que tá chegando!)
Passo 2: entenda, de uma vez por todas, que ciência é muito maior do que o argumento de pseudo-autoridade (“pesquisadora de Madrid”, “infectologista da USP”…)
Passo 3: a mídia quer cliques. Eles perceberam que noticiar estudos de COVID (independente da sua qualidade e veracidade) vai trazer muitos acessos. Aprenda a não usar jornais (especialmente com viés político de qualquer lado) como fonte de conhecimento.
Passo 4: tampouco o Zap é constituído de pessoas de confiança. Áudios (mesmo que verídicos) e vídeos de pseudo-autoridades não são evidência científica e não merecem nosso precioso tempo.
Passo 5 (especial para médicos que ainda estão sendo enganados): olhe para o seu lado e veja quem está contigo. Aquele médico que até ontem você chamava de charlatão? Um site que multiplica valor de p? Twitteiro de xadrez 4D?

Pois é.

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More from @josenalencar

13 Feb
Faz muito sentido, não é?
Só que o nosso corpo não se importa com nossa lógica, por mais bonito que pareça o texto escrito.

Entenda por que o Mecanicismo morreu neste fio.
Em primeiro lugar, esta é uma figura real do corpo humano não se importando com nada do que foi dito naquele print:

Link para visão do mapa interativo: sigmaaldrich.com/technical-docu…
É tentador ser um médico mecanicista porque, como disse em outros posts, a ilusória sensação de certeza e de segurança passada por esse tipo de estratégia é muito cativante para atrair leigos e médicos leigos.
A imagem de onisciência e de alto conhecimento é chamativa.
Read 15 tweets
12 Feb
Quando uma terapia é comprovadamente ineficaz, só resta ao paciente experimentar os seus danos. E esses danos são vão mais além do que os descritos em bula.

São eles:
- Os efeitos colaterais individuais;
- Os efeitos colaterais coletivos.
Viés de comissão é a inabilidade de ficar inerte quando não há o que fazer. Em Medicina, esse viés é ilustrado por:
- Na linha de frente de uma pandemia, temos que prescrever tudo o que fizer sentido, mesmo que não haja comprovação científica ou que seja comprovadamente ineficaz.
Uma das narrativa que tentam justificar essa atitude é a de que a ciência é lenta e demoraria anos para que tivéssemos comprovações. Quem fala isso não conhece os exemplos:
- Dexametasona e estudo RECOVERY
- Vacinas para COVID.
Read 12 tweets
3 Feb
Em uma discussão, se alguém usa pressupostos falsos para seus argumentos, estes argumentos serão também falsos porque estão fundamentados em mentira.

É apenas de pressupostos falsos que vive a turma do “eu apoio o tratamento precoce”.
Pressuposto do leigo e do médico leigo:
- Esse pessoal não sabe que existem 500 artigos sobre tratamento precoce e 1 chance em 20 bilhões que ela seja falsa.
- Vou mandar pra ele qualquer artigo da lista ou o link do c19study, HCQ meta ou qualquer um desses. Sem legenda.
Realidade:
- Não se prova uma hipótese por número, mas por qualidade de artigos. A maioria dos artigos dessa lista tem péssima qualidade e não tem poder confirmatório.
- Compartilhar c19study sendo médico é motivo de completa vergonha. É atestado de iliteracia ou má fé.
Read 9 tweets
1 Feb
Está na hora de a gente se perguntar se parte da tragédia que estamos vivendo não pode estar vindo justamente do viés de comissão da maioria dos nossos médicos mecanicistas e leigos.

Em outras palavras: fazer mais do que o paciente precisa também causa dano.
O médico leigo, aquele que se informa por vídeos do Alexandre Garcia, tweets de “comentaristas políticos paranóicos de xadrez 4D” e pelo grupo Dignidade Médica no Facebook (é irônico porque lá não se vê dignidade nenhuma) é também o mesmo que não pensa que:
- Quando um remédio é ineficaz, sobra dele apenas os seus efeitos colaterais, danos e riscos.

A quantidade de pacientes que recebeu, por exemplo, anticoagulantes (até aqui apenas uma hipótese de baixa plausibilidade - mas na cabeça do mecanicista, só isso basta), é incontável.
Read 6 tweets
31 Jan
Qual dos testes abaixo é 100% acurado?
Se há uma bala em um revólver de 50 canos, qual a possibilidade de ser atingido por uma bala em um disparo de uma roleta russa?
Se a letalidade da COVID está em torno de 2%, qual a probabilidade de morrer de COVID estando infectado, caso não use nenhum medicamento?
Read 8 tweets
15 Jan
Luis teve um diagnóstico que, segundo seu médico, precisa de cirurgia urgente.
Na verdade, ele teve um “overdiagnosis” e o seu tratamento desnecessário teve desfecho trágico.
Mesmo assim, Luis é grato e ilustra o proposto “viés do gato de Schrödinger”, que acabamos de publicar.
Aos 60 anos, assintomático, Luis foi impactado por esse diagnóstico em um inocente exame de check-up. Seu médico lhe explicou a gravidade e o mecanismo da doença e do seu tratamento cirúrgico.

Em um universo paralelo, Luiz, de 60 anos, não realizou este exame.
Como um bom espectador de programas matinais de saúde, Luis (com s) não pensou na possibilidade de:
- Exame falso positivo - grande problema dos check-ups
- Overdiagnosis - quando é diagnósticada uma doença que não levaria a sintomas ou morte

Luis coloca broche rosa em novembro.
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