Bom dia. Farei um breve fio sobre a fragmentação de "leituras obrigatórias" no meu campo de atuação: a sociologia. Formam-se bolhas de pesquisadores e leitores muito agressivos, movidos por uma espécie de fetiche. Lá vai.
1) Nos anos 1980, leitura obrigatória no campo progressista era Marx - com ampla vantagem para os textos do jovem Marx - e Gramsci.
2) No Brasil da lenta e gradual reconstrução democrática estava em curso a revisão da bibliografia histórica e sociológica oriunda das teses da III Internacional. Do conceito de "resquícios feudais" e "revolução de 30" emergia uma literatura cujo foco era a história dos vencidos
3) De Weffort à Marco Aurélio Garcia; de Amnéris Maroni ao Kazumi Munakata, passando por Sérgio Silva na economia... era uma explosão de releituras sobre nossa história.
4) A antropologia era um mundo à parte que oscilava entre o relativismo de Roberto Da Matta ao debate sobre inclusão ou aculturação das populações indígenas, o que dialogava com teses de Strauss, Darcy Ribeiro, Manuela Cardoso e as produções indígenas
5) Até que veio o furacão pós-modernista. E a vida intelectual e as leituras em ciências sociais se fragmentaram.
O que sinto nos últimos anos é uma hiperespecialização temática e a formação de guetos de leitores.
6) Daí parecem surgir best-sellers que não se sabe se duradouros ou efêmeros. Autores como Bauman e Byung-Chul Han são apontados por amigos como "obrigatórios"
7) Dependendo do círculo de leitores, mais uma dezena de leituras obrigatórias é apresentada como definitiva para entendermos o caos em que nos metemos.
8) Dentre os brasileiros, Jessé Souza parece ter tido o maior sucesso. Um caso ímpar de um weberiano que se tornou uma espécie de fetiche entre leitores progressistas. Num campo mais restrito, a literatura identitária gerou seus best-sellers.
9) Mas, o fato é que as "leituras obrigatórias" são apresentadas em bolhas de leitores que têm seu foco temático. As bolhas, como se sabe, raramente conversam entre si. O que acaba por gerar leitores vorazes e agressivos. Delas surgem idólatras de teorias e autores preferidos.
10) Vivemos esse mundo estranho em que a cultura BBB alimenta histerias sem muito sentido que consomem fogos de artifício quando da eliminação de alguma Karol. Alguém que parecia famosa - mas que nunca ouvi falar - e que sai com imagem arranhada para mergulhar novamente no gueto
11) Há algo de muito estranho nesse mundo em que o debate de teses e hipóteses no meu meio - o da sociologia - se transformou em bolhas de autopromoção e demonização das bolhas adversárias.
Decaímos.
12) Percebo nas novas gerações de pesquisadores e leitores da área a avidez para encontrarem a chave de leitura do mundo. Não se trata mais de contribuição, mas de "seu lugar de fala". O que interdita a dúvida e o diálogo.
E transforma o conhecimento em dogma. (FIM)

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25 Feb
Boa tarde. Recebi um paper que trabalha o perfil de quem se autodefine esquerda e direita no Brasil. O título do paper é Dimensão e Determinantes do Pensamento Ideológico entre os Brasileiros, escrito por Pedro Henrique Marques. Farei um fio sobre os dados (interessantíssimos) Image
1) A base de dados que o autor usou foi a do Projeto de Opinião Pública da América Latina de 2017. São dois critérios empregados para definir a identidade ideológica: econômica e de costumes.
2) Trata-se de uma definição muito empregada nos EUA (em virtude do conceito de "liberal" por lá). Meio complicado para usar na América Latina, mas, sejamos maleáveis
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24 Feb
Sofri um processo alérgico muito forte desde sábado. Pelos sintomas, por precaução, meu alergista pediu que fizesse o teste para Covid. O resultado saiu agora: negativo. Eu desconhecia os protocolos de convívio em casa para quem tem suspeita. Vou socializar aqui:
Você deve ficar num quarto isolado. Seus pratos, talheres, copos, bucha para lavar pratos passam a ser de uso específico. Quem lava tudo que usa é você.
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21 Feb
Vou fazer mais um fio neste domingo. Na verdade, um micro fio, que estabelece relação com o anterior. O Clube de Engenharia acaba de publicar uma nota sobre o preço do petróleo e a administração equivocada da Petrobrás. Vou reproduzir o miolo desta nota. Lá vai:
a) Antes, uma breve informação sobre o Clube: foi fundado em 24 de dezembro de 1880, por Conrad Jacob Niemeyer, para agregar engenheiros e técnicos com o objetivo de oferecer um espaço democrático para a discussão de questões relacionadas ao desenvolvimento nacional.
b) Vamos à nota, assinada pelo presidente do Clube de Engenharia, Pedro Celestino:
"Preços dos Combustíveis e Interesse Nacional
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21 Feb
Bom dia. Farei um breve fio sobre o que aparentemente ocorre no interior das Forças Armadas (FFAA) brasileiras em relação ao alinhamento - parcial ou total - ao bolsonarismo. Consultei analistas, pesquisadores e interlocutores do Alto Comando. Lá vai:
1) O ideário e organização internos das FFAA brasileiras tem origem em cooperações com Alemanha e França. No início do século XX, militares se alinharam à concepção alemã. Uma comissão esteve na Alemanha e de lá trouxe a organização e ideário de defesa nacional.
2) A revista A DEFESA NACIONAL teria sido um dos resultados deste alinhamento, fundada por Euclides Figueiredo, Bertoldo Klinger, Genserico de Vasconcelos e Augusto de Lima Mendes
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16 Feb
Bom dia. Farei o fio que prometi há pouco sobre as dificuldades para criarmos mobilizações mais constantes nos últimos dois anos. Tem relação com esta manchete do portal UOL que afirma que a oposição defende protocolarmente o impeachment, mas aposta no desgaste de Bolsonaro.
1) Desde abril de 2017, quando as centrais sindicais lideraram a maior greve geral da nossa história, as mobilizações do campo progressista brasileiro se tornaram intermitentes: mobilizações estudantis, carreatas, greve de trabalhadores de aplicativos ou manifestação das torcidas
2) Embora a provisoriedade seja uma marca das mobilizações e engajamentos sociais deste século XXI, o Brasil parece apresentar um sintoma mais agudo desse fenômeno: de 2017 para cá, as mobilizações populares são cada vez mais inconstantes e não geram uma liderança nacional
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14 Feb
MOBILIZAÇÕES

A Campanha Nacional Fora Bolsonaro apontou o domingo, 21 de fevereiro, como próxima data de mobilização nacional em defesa da vacinação para todos, da volta do auxílio emergencial, contra o desemprego e a fome e pelo impeachment de Jair Bolsonaro.
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A orientação da campanha, a exemplo das ações já realizadas neste ano, é de que sejam evitadas as aglomerações e sejam realizadas carreatas, bicicleatas e atividades simbólicas que dêem visibilidade para nossas bandeiras unitárias respeitando as regras de segurança sanitária.
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