O relevo de Burney, ou “a rainha da noite”, é uma placa de terracota em alto relevo da antiga Mesopotâmia, muitas vezes usada pra identificar a iconografia de Lilith (tema já controverso), porém há discussões em torno do artefato e de quem ele representa.

Segue👇
Ela provém do sul da Mesopotâmia, provavelmente na Babilônia, durante o reinado de Hammurabi (1792-1750 AC), pois compartilha qualidades de artesanato e técnica com a famosa estela de diorito das leis de Hamurabi e também com a peça conhecida como ‘o deus de Ur’ do mesmo período.
Infelizmente, sua proveniência original permanece desconhecida. O relevo não foi escavado arqueologicamente e, portanto, não temos mais informações de onde veio ou em que contexto foi descoberta.

O artefato foi levado a Londres por um negociador sírio-libanês por volta de 1930.
Foi feita de argila com palha adicionada, o fato de a peça ter sido cozida, e não seca ao sol, atesta a sua importância, pois apenas as artes mais significativas foram criadas desta forma. Como a madeira era escassa na região, não era usada levianamente para queimar argila.
Depois de resfriada, foi pintada com um fundo preto, a mulher e as corujas em vermelho e os leões em branco com jubas pretas. Os símbolos do bastão e anel, o colar e seus adornos eram de ouro.
Os traços originais ainda podem ser detectados na peça hoje, embora desgastados.
A mulher retratada no relevo é reconhecida como uma deusa, pois ela usa adorno com chifres e segura o símbolo sagrado da haste e do anel em suas mãos levantadas.

Ela não é apenas alada, como suas pernas se afinam em garras de pássaro que se agarram aos leões.
A identidade da ‘rainha da noite’ é o aspecto mais intrigante da peça e, segundo os arqueólogos três candidatos foram propostos: Inanna, Lilith e Ereshkigal.

A iconografia da mulher nua era popular em toda a Mesopotâmia, começando a aparecer a partir do segundo milênio AC.
Existem problemas com Inanna como a Rainha decorrentes da iconografia da peça. Embora esteja associada a leões, ela não está associada a corujas. O adereço para a cabeça e os símbolos da haste e anel caberiam em Inanna, assim como o colar, mas não as asas ou os pés e garras.
A presença dos símbolos de Inanna pode ser explicada pela sugestão de que o relevo retrata Ereshkigal após o triunfo sobre sua irmã.

No mito da Descida de Inanna ao submundo, Inanna é forçada a despir seus ornamentos ao passar pelo reino e o relevo pode ser tal representação.
Lilith é um demônio, não uma deusa, e embora haja associações de Lilith com corujas, não são o mesmo tipo que aparecem no relevo.

Além disso, Lilith vem da tradição hebraica, não da Mesopotâmica, e corresponde apenas a demônios femininas da Mesopotâmia conhecidas como lilitu.
Em qualquer das tradições, a lilitu não era uma figura popular o suficiente para ser retratada em uma placa como a Rainha da Noite.

Demônios eram raramente retratados na arte, talvez porque se pensasse que suas imagens poderiam colocar as pessoas em perigo.
A terceira candidata é Ereshkigal, seu nome significa “Senhora do Grande Lugar”, referindo-se à terra dos mortos e há uma série de aspectos da placa que parecem sugerir Ereshkigal como candidata a rainha retratada.

Arte: Charles Moffat.
A iconografia das asas apontando para baixo foi usada em toda a Mesopotâmia para indicar uma divindade ou espírito associado ao submundo, descrito como um lugar escuro, com os mortos, nus ou vestidos com asas como pássaros, o que pode fazer referência ao fundo negro da placa.
Como deusa, Ereshkigal tinha direito ao adorno com chifres e ao símbolo da haste e anel.

Sua frontalidade é estática e imutável e, como Rainha do Submundo, onde 'os destinos foram determinados', ela era o ‘julgamento final’, podendo muito bem ter direito aos dois símbolos.
Toda a iconografia da placa parece indicar que a divindade representada é Ereshkigal, mas é importante lembrar que nenhuma conexão definitiva com Ereshkigal pode ser feita, pois ela não tem iconografia conhecida, sem elas a identidade da Rainha permanece um mistério.
O tamanho da placa sugere que ela teria pertencido a um santuário, possivelmente como um objeto de adoração, tal santuário pode ter sido um espaço dedicado em um grande assentamento, mas não foco principal em um dos templos da cidade, que conteria deuses esculpidos em círculo.
O relevo de Burney é uma das mais icônicas e populares peças arqueológicas provenientes da Mesopotâmia, talvez por sua incrível preservação e a errônea identificação com Lilith, e está atualmente em exposição na sala 56 do Museu Britânico, em Londres.
Fontes: Dominique Collon ‘The queen of the night’, ‘Gods, Demons and Symbols of Ancient Mesopotamia’, J. Black/A. Green, Joshua J Mark, Ancient History.

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24 Feb
Cerâmica pré-colonial Amazônica.🏺🌳

Considerações gerais:

A floresta amazônica é a maior floresta tropical do mundo (4,9% da área continental mundial), ocupando uma área de 7.000.000 km² distribuída em nove países, dos quais Brasil, Peru e Bolívia tem a maior extensão. ImageImageImage
O trabalho realizado pelos arqueólogos Meggers e Evans na foz do Amazonas é considerado o início da arqueologia científica na Amazônia Brasileira, em meados da década de 1950 e início da década de 1960. Image
Meggers considerava, naquela época, a área amazônica inadequada para seu próprio desenvolvimento sócio-cultural devido aos limites impostos pela natureza e avaliou sua produção cerâmica como a interferência de outras culturas de origem andina.
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23 Feb
O sítio arqueológico de #Uxmal.

A antiga cidade Maia de Uxmal está localizada na Península de Yucatán, no México e foi um importante centro religioso e cerimonial, destacada pelo seu estilo artístico e arquitetônico.

Segue o fio👇 Image
Uxmal foi uma das capitais regionais durante o período clássico tardio e é considerada hoje um dos mais importantes sítios arqueológicos da civilização.

Localizadas na região de Puuc, suas ruínas são um documento impressionante dos feitos arquitetônicos da Mesoamérica.
Uxmal significa “construído três vezes” ou “o que está por vir, futuro”.

As tradições Maias dizem que o primeiro rei da cidade foi derrotado por um anão mágico, que ganhou a posição de rei ao construir o monumento mais alto (Pirâmide do Adivinho) da cidade em uma única noite.
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7 Feb
A pedra dos 12 ângulos é uma amostra do conhecimento arquitetônico Inca, e ao mesmo tempo, uma das atrações mais populares que existem na cidade de Cusco. Seu prestígio se deve à idade de sua estrutura, em ótimo acabamento e perfeccionismo, característicos da civilização Inca.
Cada bloco foi moldado para se encaixar perfeitamente com todos os blocos ao redor, exigindo uma quantidade meticulosa de cuidado e atenção aos detalhes.

De fato, as juntas da parede são moldadas com tanta precisão que nem mesmo um único pedaço de papel cabe entre os blocos.
A pedra atinge pesa seis toneladas e está localizada na rua Hatun Rumiyoc e pertence a uma construção que antigamente era o palácio do Inca Sinchi Roca.

Diz-se que s pedra representa a divisão de 24 famílias: 12 famílias em Hurin Cusco e 12 em Hanan Cusco.
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5 Feb
María Sabina Magdalena García (1894–1985), a “mulher espírito”, foi uma curandeira, xamã e sábia do povo indígena Mazateca, em Huautla de Jiménez, Oaxaca, México.

Sua cura era exercida através das ‘veladas’, cerimônias religiosas que envolviam o uso de cogumelos.

Segue o fio👇 Image
Sabina cresceu em uma família de xamãs na Sierra Mazateca e desempenhou um papel fundamental na introdução da cerimônia dos Teonanácatl em veladas ao mundo, sendo a primeira curandeira mexicana a permitir a participação de ocidentais neste tipo de ritual.
A intenção das veladas, que duravam a noite toda era comungar com Deus para curar os enfermos.

Os espíritos, se contatados com eficácia, contariam à Sabina a natureza da doença e como ela poderia ser curada. Image
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20 Jan
Thread: Animismo

O animismo é um aspecto religioso que na antropologia infelizmente sempre foi alvo de teorias evolucionistas e colonialistas, categorizado como um entendimento de pessoas “primitivas”.

Mas isso está longe de ser verdade!

Segue o fio 👇 Image
A definição moderna de animismo é a ideia de que pessoas, animais, características geográficas, fenômenos naturais e objetos inanimados podem possuir uma essência espiritual, significativa ou simbólica que conectam religiosamente uma sociedade.
O animismo é um aspecto religioso e construção antropológica usada para identificar fios comuns de espiritualidade entre diferentes sistemas de crenças, o animismo pode ser percebido, principalmente, em muitas culturas indígenas e aborígenes.
Read 44 tweets
16 Jan
Infelizmente, parece que o #Enem2020 não vai ser adiado, o que é lastimável, mas, tendo isso em mente, que tal umas enquetes com questões de vestibulares passados sobre civilizações pré-colombianas?

Vamos 👇
1- Três dessas civilizações têm a região que ocuparam identificada no mapa.

Assinale a alternativa que associa corretamente o número ao povo que ali se estabeleceu.

Enquete abaixo 👇
1,2,3. Respectivamente:
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