Se aparecesse um trial duplo-cego, randomizado, placebo-controlado, conduzido de maneira séria e não para auto-promoção, que demonstrasse benefício com ivermectina, você a prescreveria?
Um fio sobre pensamento bayesiano e um pouco sobre visão de mundo.
Thomas Bayes colocou na ponta do lápis uma questão do nosso dia a dia:
- Nós não somos ingênuos a ponto de acreditar em tudo que vemos e ouvimos por aí.
Exceções: fé, acreditar em médicos como eminências, acreditar que comentaristas políticos e políticos são imparciais.
Imagine que alguém chega e fala:
- A Terra é plana.
Diante de tantas evidências de que a Terra é redonda, por que você acreditaria nisso assim de cara?
Provavelmente solicitaria mais informações, não é?
Por que, com artigos científicos, agem diferente?
Eu até sei a razão: você foi acostumado a pensar que a ciência existe para confirmar verdades e se essa entidade “a ciência” diz algo, então, para você é verdade.
Não passa pela sua cabeça que
a) Charlatões existem e eles também podem receber o título de “cientistas”;
b) Os testes estatísticos usados para testar hipóteses são bem mais complexos do que o seu argumento infantil de “minha família toda tomou ivermectina e está bem”.
c) O que fazer com resultados conflitantes? Dizer que há um complô contra o seu político de estimação?
O teorema de Bayes existe para que adicionemos novos dados aos nossos conhecimentos prévios.
O meu conhecimento prévio é de que:
- A Terra é redonda;
- Remédio de piolho é um jeito fácil de se promover enganando leigos e médicos leigos durante uma pandemia.
Isso significa que a probabilidade pré-teste é baixa. Para colocar em valores numéricos, vou dizer que há 1% de chance de que a Terra seja plana e que remédio de piolho é a solução injustiçada da pandemia, mesmo sendo largamente utilizado num país que vai de mal a pior.
Digamos que se produza um estudo perfeito. Sem vieses. Com amostra suficiente para que, com uma sensibilidade de 90% (convenção em estudos médicos) e uma especificidade de 95% (outra convenção), se encontre redução de mortalidade com ivermectina. E o valor de p foi < 0,05%.
Pois bem, usando esses mesmos valores e inserindo-os no Teorema de Bayes (esse que nos ensina que a probabilidade pós-teste depende da probabilidade pré-teste e das características do teste), temos uma probabilidade de 85% de que esse resultado seja falso.
Perceba que fui benevolente. Se usarmos uma probabilidade pré-teste ainda mais realista: há 0,1% de probabilidade que as eminências brasileiras estejam promovendo ivermectina porque é realmente eficaz e não para enganar bobos:
98% de probabilidade de resultado falso.
Então, não. Na visão de mundo de quem entende as limitações da “ciência” e percebe charlatanismo de longe, um trial, mesmo que sem vieses, positivo, não mudaria o jogo.
Os trials negativos são apenas uma perda de tempo - é chutar cachorro morto.
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Um dos argumentos mais utilizados por quem defende remédios “me engana que eu gosto” para COVID é o de que países que adotaram essas medidas ilusórias e populistas estão lidando bem com a pandemia.
Concluir risco individual através de dados de grupos é a falácia ecológica. Fio.
Estudos do tipo ecológico (que comparam países com países, por exemplo) são baratos e rapidamente realizáveis.
O estudo da BCG e COVID, por exemplo, levou 1 dia para ser escrito.
Também são de fácil interpretação para um leigo e, por isso, possuem forte apelo midiático e popular
Baseado em estudos ecológicos, foi possível desenhar este gráfico, por exemplo.
Está demonstrado que os países que promovem Ivermectina têm menor taxa de morte/casos que os que não promovem.
É tentador ser um médico mecanicista porque, como disse em outros posts, a ilusória sensação de certeza e de segurança passada por esse tipo de estratégia é muito cativante para atrair leigos e médicos leigos.
A imagem de onisciência e de alto conhecimento é chamativa.
Quando uma terapia é comprovadamente ineficaz, só resta ao paciente experimentar os seus danos. E esses danos são vão mais além do que os descritos em bula.
São eles:
- Os efeitos colaterais individuais;
- Os efeitos colaterais coletivos.
Viés de comissão é a inabilidade de ficar inerte quando não há o que fazer. Em Medicina, esse viés é ilustrado por:
- Na linha de frente de uma pandemia, temos que prescrever tudo o que fizer sentido, mesmo que não haja comprovação científica ou que seja comprovadamente ineficaz.
Uma das narrativa que tentam justificar essa atitude é a de que a ciência é lenta e demoraria anos para que tivéssemos comprovações. Quem fala isso não conhece os exemplos:
- Dexametasona e estudo RECOVERY
- Vacinas para COVID.
Em uma discussão, se alguém usa pressupostos falsos para seus argumentos, estes argumentos serão também falsos porque estão fundamentados em mentira.
É apenas de pressupostos falsos que vive a turma do “eu apoio o tratamento precoce”.
Pressuposto do leigo e do médico leigo:
- Esse pessoal não sabe que existem 500 artigos sobre tratamento precoce e 1 chance em 20 bilhões que ela seja falsa.
- Vou mandar pra ele qualquer artigo da lista ou o link do c19study, HCQ meta ou qualquer um desses. Sem legenda.
Realidade:
- Não se prova uma hipótese por número, mas por qualidade de artigos. A maioria dos artigos dessa lista tem péssima qualidade e não tem poder confirmatório.
- Compartilhar c19study sendo médico é motivo de completa vergonha. É atestado de iliteracia ou má fé.
Está na hora de a gente se perguntar se parte da tragédia que estamos vivendo não pode estar vindo justamente do viés de comissão da maioria dos nossos médicos mecanicistas e leigos.
Em outras palavras: fazer mais do que o paciente precisa também causa dano.
O médico leigo, aquele que se informa por vídeos do Alexandre Garcia, tweets de “comentaristas políticos paranóicos de xadrez 4D” e pelo grupo Dignidade Médica no Facebook (é irônico porque lá não se vê dignidade nenhuma) é também o mesmo que não pensa que:
- Quando um remédio é ineficaz, sobra dele apenas os seus efeitos colaterais, danos e riscos.
A quantidade de pacientes que recebeu, por exemplo, anticoagulantes (até aqui apenas uma hipótese de baixa plausibilidade - mas na cabeça do mecanicista, só isso basta), é incontável.