Thread by @lftofoli

Diante da atuação anticientífica de parte dos médicos durante a pandemia no Brasil, @NilMoretto fez uma pergunta cândida e importante: "Pergunta sincera: médico não estuda método científico na faculdade?"

Prometi para ela que faria uma #aulacordel para tentar responder. Aí vai.

A resposta curta é 'NA TEORIA, SIM'. O marco legal básico para o ensino médico são as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina, do Ministério da Educação. A última edição é de 2014 e determina que os estudantes devem desenvolver essas competências aí.

Muitos cursos tentam cumprir, das mais diversas formas, essa missão. Aqui na Unicamp os alunos de primeiro ano fazem uma disciplina na qual eles devem, com ajuda de orientadores, elaborar (mas não necessariamente executar) um projeto de pesquisa científico.

É comum também, nos melhores cursos médicos, que alunos tenham experiência com pesquisa na forma de projetos reais de Iniciação Científica, também orientados por professores. E eles ainda são usualmente apresentados, nos anos iniciais do ciclo básico, ao raciocínio científico.

Diante disso, por que ocorrem, então, casos de médicos sancionando tratamentos sem qualquer evidência científica? Bem, claro que não se esgota uma questão desse tipo em um cordel de Twitter, mas vou elencar alguns elementos que julgo serem importantes.

Primeiro, só os médicos mais jovens foram expostos ao método científico de forma satisfatória em sua formação. As primeiras Diretrizes Curriculares são de 2001, quando efetivamente começa a mudar (para melhor) a Educação Médica brasileira. Porém, só isso não fecha a questão.

Segundo, embora se baseie na Ciência, entre outros valores, a Medicina não é, em si, uma ciência, mas uma prática. E, por mais incômodo que isso possa parecer, ela é, na maior parte, aprendida a ser exercida assim: na prática mesmo, especialmente nos últimos 2 anos de internato.

E na pauleira do internato, boa parte do aprendizado que tenha ocorrido sobre Medicina Baseada em Evidências fica um pouco de escanteio. A principal questão é “como eu trato isso?” e por vezes a resposta, embora devesse, não discorre sobre metanálises ou qualidades de evidência.

E após a formação, de fato, o contato dos médicos com a última evidência científica disponível é muito variável, e embora os melhores médicos estejam sempre se atualizando, isso não pode ser dito de todos, e talvez nem da maioria, por mais assustador que seja saber disso.

Como aparece no longo artigo de David Epstein e @ProPublica (trad. Google aí), os médicos estão muito mais dispostos a rapidamente adotar um tratamento com baixas chances de funcionar do que abandoná-lo quando ele se mostra inútil, obsoleto ou perigoso.

translate.google.com/translate?sl=e…

Agora pense na situação da covid-19, algo muito novo para a Medicina. Ficar tomando sintomáticos e esperando para saber se o seu caso vai levar a hospitalização (conduta correta) é angustiante, então pacientes pressionam médicos por algum tipo de tratamento – qualquer tipo.

A mistura da angústia do paciente e do médico com a irresponsabilidade do presidente e demais advogados do inútil ‘tratamento precoce’ se torna explosiva, e pensando “se não fizer bem, mal não fará”, muitos médicos, erroneamente, prescrevem kits-covid.
bbc.com/portuguese/bra…

Por fim, pensando na Medicina como um fenômeno social, devemos lembrar que estamos falando de uma profissão cujos praticantes são, em sua maioria, politicamente conservadores.

Mas atenção, NÃO se pode afirmar que médicos de direita sejam menos preparados cientificamente.

Entretanto em alguns casos extremos – e esse parece ser, aparentemente, o do presidente do CFM – as posições políticas muito aguerridas podem, sim, afetar o julgamento sobre o que é correto ou incorreto prescrever do ponto de vista da evidência científica.
revistaoeste.com/brasil/dizer-q…

Como de fato nem tudo é Ciência na Medicina – e eu nem acho que deveria ser – abre-se, na situação atual, uma perigosa brecha para defesas elásticas da ‘autonomia’ do médico.

Felizmente isso já foi revisto pela @AMB_oficial, mas não pelo @Medicina_CFM.

g1.globo.com/sp/campinas-re…

Então, @NilMoretto, para concluir, eu responderia que na maioria os médicos tiveram contato com o método científico em sua formação. Mas isso, apenas isso, não resolve a sequência de erros que leva à tempestade perfeita que tem sido o combate à covid-19 no Brasil. Infelizmente.

Esse é um tema complexo. É impossível dar conta de todas as nuanças. A quem leu tudo até aqui e percebeu que algo mais pode ser apontado, discordado ou corrigido, peço que traga seu ponto aqui para o debate, com educação e respeito. Conversando a gente se entende.