Há um conceito historiográfico chamado micro-história que ajudou a desenvolver métodos de análises minuciosas de fontes, tempo e espaço para pensar contextos específicos.

Um exemplo: entender o camponês, anônimo e excluído, como agente atuante das (macro) revoluções europeias.
A partir disso, é fundamental entender o papel de pessoas e grupos que não ocupam os registros, mas são protagonistas.
É papel de historiadores e historiadoras não transformar processos históricos em feitos de heróis.
Quilombo dos Palmares não teria 1 século de história sem a comunidade que ali viveu e construiu.

Os Panteras Negras não seriam o que foram sem homens e mulheres que atuavam nas campanhas de alimentação infantil, enquanto formavam a comunidade através da educação revolucionária.
A luta contra a segregação na África do Sul não aconteceria apenas com a luta armada e dos grupos que articularam a derrubada do regime do Apartheid.
As articulações da sociedade civil que sentiu o racismo na pele e sabotou o sistema de frente foram fundamentais para a conquista.
O registro dos vencedores é excludente, pois o mundo sempre foi excludente. Pessoas com deficiência não eram consideradas pessoas pela sociedade moderna, o camponês não era considerado parte daqueles que deveriam ser favorecidos pelo poder. Logo, a "macro-história" os esquecia.
Dito isso, é fundamental sim o enfrentamento aos retrocessos e violências que recaem sobre o Brasil nos últimos anos, que vejo eu, é um processo específico que não necessariamente se quantifica ou qualifica mais ou menos grave que outros períodos.
Mas seguir a lógica de um padrão estabelecido de pessoas "capazes" de enfrentar o sistema de frente por uma lógica (apenas) física e direta, é desconsiderar outras formas de existir. Como há séculos atrás, faziam.
Pessoas com deficiência constroem o mundo e lutam contra a exclusão que é fruto dessa invisibilidade histórica. Lutam, inclusive, contra nós, que continuamos sem pensar nas barreiras que não ajudamos a derrubar.
Há minorias com guerras tão urgentes que só podem tentar sobreviver.
O mundo vive em constante transformação, e hoje não é o mesmo de 100 anos atrás. As possibilidades se multiplicaram, as formas de atuação também.

Há muito tempo que ser linha de frente não significa mais apenas quem pode formar escudo humano e enfrentar cassetete e spray.
Se não entendermos que pessoas que não andam, enxergam, escutam ou falam também lutam e constroem, assim como também são linha de frente de formas diversas, pois o mundo é diverso, nunca construiremos uma realidade igualitária.
Outras formas de existir são possibilidades em um mundo que existe de formas diversas.

A história não é protagonizada pelos "clássicos vencedores". Ela é de todas as pessoas. Do líder político ao pensador marginal. Da cidade ao campo.

Incluir pra lutar. Lutar pra incluir.

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More from @ReTintaPreta

31 Mar
Sobre #DitaduraNuncaMais, memória e Brasil:

Numa fazenda no interior de SP, tijolos antigos com suásticas foram achados, o que levou a uma pesquisa que remeteu à década de 30.

Uma família rica e próxima ao nazismo pegava crianças negras em orfanatos para trabalho escravo. Um tijolo sendo segurado po...
A família era parte da Ação Integralista Brasileira.
Privou crianças negras do direito à vida as escravizando.

A família é Rocha Miranda, e ela dá nome ao bairro onde moro.
Esse caso é apenas mais um dos inúmeros momentos da nossa história que mostram como o Brasil não sabe lidar com o passado. Ou sabe, mas escolhe lidar da pior maneira.

Falamos do país que preserva com honra a memória de Borba Gato e os bandeirantes que exterminaram povos por aqui
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22 Feb
- Sobre o lugar do negro nos quadrinhos

A década de 1970 é repleta de marcos. Os impactos das lutas por direitos civis nos EUA dos anos anteriores(Ex: Panteras Negras), pavimenta o caminho para o surgimento do Hip-Hop, cultura que abrange música, dança e artes como o grafite.
Em Hollywood, um movimento para combater o racismo, a falta de protagonismo e narrativas preconceituosas nos cinemas surge, levando pessoas negras a protagonizarem filmes na frente e atrás das câmeras. Esse movimento é chamado de Blaxploitation.
Os Quadrinhos, até poucos anos antes uma reprodução fiel da sociedade segregadora, se vê em um novo dilema: a necessidade de se adaptar às mudanças que estavam acontecendo na sociedade. Na Marvel, personagens como Luke Cage e Pantera Negra já abriam caminho para essa mudança.
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11 Feb
Perceba como pessoas brancas são lidas e se lêem como tais apenas diante de um negro reivindicando sua humanidade.

Quando é posta uma situação de preconceito, o branco se percebe. Se não, ele é só humano.

O (ser) negro, porém, tem a individualidade dos seus atos sempre negada.
A virtude humana é disseminada a partir do homem branco. Ao negro, a possibilidade de absorver e ser, para ser humano, como o o branco.

Veja como pessoas negras foram chamadas de escravas por 400 anos, enquanto os brancos não são chamados de escravizadores.
Perceba como 400 anos de escravidão resumem a história de todas as pessoas negras do Brasil, enquanto o ato de escravizar foi a decisão errada de alguns homens, mas que uma mulher branca boazinha encerrou por já ter durado tempo demais.

Assim ninguém pode falar dos brancos.
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21 Dec 20
O "Cala boca, negro" me doeu demais. Chorei com o Gerson, pois não foram poucas vezes que isso ocorreu comigo. Já tive risada como reação de um policial que perguntou minha profissão. Fui desautorizado inúmeras vezes.
Quase todos os meus apelidos da infância eram sobre minha cor.
Eu comprei um novo jogo e tô adorando. Queria escrever sobre ele, gravar podcast, pois é isso que eu gosto de fazer. Mas a minha existência é atravessada diariamente por violências, sejam elas sofridas por mim ou por outros.
Por isso eu escrevo textos sobre raça, por isso eu falo sobre ser negro, pois cresci em um lugar que só existe porque o racismo (pessoas e estrutura) decidiu, e outros continuam crescendo e sofrendo as mesmas violências.
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18 Dec 20
Nesse ano assisti à série "Hollywood" e fiquei bem emocionado com a utopia que a série aborda com a história de pessoas negras que lutaram pelo sonho do cinema em plenos anos 50, com pós-guerra e segregação.

Aqui é onde a representatividade me emociona. Aqui que eu gosto de ver. Image
Quando colocamos (além da ficção) a representatividade no topo dos objetivos de luta, caímos na cilada do já batido jargão "pretos no topo", que nos desvia o olhar para entender que contra a opressão ao povo preto, derrubar "o topo" tem que estar no topo para nós, pretos. 🤯
Conquistas individuais, papéis de liderança e espaços de poder ocupados por algumas pessoas pretas podem sim significar alguma mudança conjuntural, mas não estrutural. Por isso "Pretos no topo" não faz sentido.
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22 Nov 20
No país que não há racismo e estão tentando o importar pra cá, completam-se hoje 110 anos da Revolta da Chibata.
Marinheiros negros tomam o controle dos mais poderosos navios da marinha e apontam os canhões para a capital do Brasil (Rio) após um marinheiro sofrer 250 chibatadas.
A marinha brasileira, relegada ao abandono após a Guerra do Paraguai, se vê em meio a um Brasil explodindo em revoltas nos primeiros anos da república, desfalcando cada vez mais as forças armadas. Dessa forma, negros e pobres são cada vez mais recrutados para a marinha.
Repleta de marujos negros, a marinha parecia não ter se tocado que a escravidão foi findada 22 anos antes, e importou para si não só tratamento, como condições de trabalho e também castigo semelhantes ao modelo escravista.
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