Desde que eu e Ana começamos a namorar, ela me convidava a visitar Vila Perseverança, um povoado minúsculo no interior do Pará.
Ana nasceu e viveu parte de sua infância lá, até vir estudar em Belém.
Mas sua família continuava em Perseverança, menos de 500 habitantes.
Depois de uns meses ocupados, finalmente conseguimos tempo e, programação feita, arrumamos mochilas e partimos.
Ana queria muito que eu conhecesse sua avó, uma velhinha de mais de 80 anos, grande responsável pela sua criação, e que queria me conhecer.
Na época eu tinha uma motinho, e lá fomos nós, pelas estradas do interior do Estado, pegando vento na cara e curtindo a paisagem.
E, no tempo programado, chegamos no velho sítio da família, um aspecto sinistro que, de cara, me deixou bem assustado.
A impressão de pavor não demorou muito, pois a avó da Ana, dona Deusa, fez tanta festa pra gente, tanta comida, e chamou amigos e os parentes, que logo tudo era só riso e alegria.
Mas a noite chegou e, com ela, alguns arrepios inexplicáveis, como se eu estivesse sendo observado.
Talvez por isso eu tenha acordado quebrado, a noite toda olhando pela janela esperando ver um vulto ou alguém. Sei lá...
No café, contei a Ana, que culpou a moto, horas de estrada e tensão prestando atenção.
Foi aí que ela propôs.
- Bora procurar um igarapé pra relaxar?
Obviamente, topei. Só um igarapé para aliviar aquela dor que eu sentia.
Dona Deusa se adiantou e disse que todos os igarapés estavam secos agora, que não era época de chuva e que íamos perder tempo, mas, quem para a juventudo.
Além disso, queria conhecer Perseverança também.
Bem... da cidade, nada a falar:
É um povoado minúsculo, sem nada. Casas quase todas iguais e muito afastadas umas das outras, todas parecendo sítios, igual a casa da Dona Deusa.
Desanimado, enquanto Ana ria da minha cara, decidimos pegar as estradinhas.
Primeiro fomos nos locais que Ana conhecia, mas, como disse Dona Deusa, estava tudo seco. Uma miséria só.
Tristes com a descoberta, nos embrenhamos por estradinhas cada vez menores, cada vez mais cercadas de mato e mata gigantesca, em que o sol quase sumia nas copas.
E foi quando, depois de longos minutos rodando sem ver uma casa, uma cerca, NADA, e a garganta começando a ficar seca, avistamos uma velha andando pelo meio da estrada, segurando um saco de pano encardido, parece que rumando para lugar nenhum...
- Olha, Ana... tem alguém ali.
- Égua, amor... vamos embora.
- Nada... Bora falar com ela. Aquela velha deve saber de algum local onde a gente possa banhar.
- Não, amor, vamos embora. Não to gostando disso.
- Como assim?
- Essa velha andando aqui, no meio do nada...
Na hora, a única coisa que pensei foi revidar os risos de antes, virar o jogo e tirar sarro da Ana com medo daquela mulher inofensiva.
Hoje, só consigo pensar que devia ter dado ouvidos a ela, ao medo dela, ter virado a moto e saído dali...
Infelizmente não foi assim.
- Bora lá... ela vai ajudar a gente, hehehehe Tá com medo, Ana?
- Ah, amor... por favor, bora voltar pra vovó...
Mas eu já tinha acelerado a moto e, num minuto, emparelhamos com a velha.
Olhando-a mais de perto senti o primeiro impulso de arrependimento...
- Bom dia, dona.
(silêncio)
- Bom dia, DONA!
(silêncio)
- OLÁ!
(e a mulher continuava calada, olhar firme no caminho, pesada e cansada)
- OLÁAAA... Tudo bem? A senhora tá bem?
Enquanto tentava conversar, Ana me segurava forte, como se estivesse com medo de cair da moto
Foi quando, sussurrando, Ana chegou mais perto e falou no meu ouvido:
- Eu imploro, vamos sair daqui.
Mas, nesse exato momento, como se tivesse acordado de um transe, a velha se virou com tudo e, fixando o olhar na gente, respondeu:
- Bom dia, filhos. Tão perdidos?
- Tamos perdidos não... a gente tá procurando um lugar pra banhar. A senhora conhece algum?
- Não, filho. Agora tá tudo seco.
- Poxa, mas nenhum lugarzinho, nem que seja fio d'água?
- Nada, filho... a não ser que...
- A não ser que o quê? perguntei rindo.
- Lá do local onde venho tem muita água. Tem lugar bom pra banhar lá, mas vocês não vão querer ir lá, hihihi
- A gente vai sim. Onde fica?
- Cê não sabe onde fica, filho?
Nessa hora me toquei que Ana estava congelada, paralisada atrás de mim, sem qualquer tipo de reação.
- Não sei não, dona, mas se a senhora indicar o rumo, vamos banhar lá e ainda lhe dou carona.
Nessa hora, como se tivesse acordado, Ana só disse, baixinho, "NÃO".
E prosseguiu:
- Vamos voltar. Agora. Quero ir pra casa.
Pelo tom de voz, soube ali que não havia mais conversa.
- Vocês vão pra onde?
- Voltar pra Perseverança. A senhora quer carona? - perguntei.
- Quero sim.
- E vai pra onde?
- Pra qualquer lugar. Vá no rumo que, chegando lá, aviso.
A velha então subiu na garupa da moto e colocou os braços ao redor de Ana, que respirava pesado.
E assim fomos, os três, pelos caminhos que levavam à vila pequenina, calados como se não tivéssemos boca.
Num determinado momento, numa estrada completamente descampada, Ana começou a sussurrar novamente.
- Amor, acelera, por favor... ela tá fazendo carinho no meu cabelo.
Sem entender nada, acelerei.
Fui até imprudente correndo daquela forma na estradinha de piçarra, mas havia um clima tão estranho, um sentimento ruim na barriga, que só sabia ser necessário chegar logo.
E, já perto da cidade, do cemitério da cidade, a velha falou:
- É aqui.
E eu parei...
O cemitério devia estar distante uns 300 metros afrente.
E, ali, não havia nada, só a ruina de um velho casebre de madeira...
E a velha disse:
- Me espere entrar.
Assim fiz, vendo a velha andar no mato com passos lentos, quase mortos.
E na ruina, ela sentou...
- Podemos ir?
- Pode sim. Mas, antes, olhe, quando a velha Deusa disser que tá seco, acredite. E não aceite convite nessas bandas, muito menos no meio da estrada deserta, no meio do mato.
- Como a senhora sabe da Dona Deusa?
Ana, olhos fechados, gritou:
- VAI, VAI, SAI DAQUI!
Sem nem pensar, aprumei a moto e comecei a acelerar, enquanto a velha, agora de pé, mais alta do que realmente era, gritou:
- QUE BOM QUE VOLTOU, MENINA ANA
Mas isso, a gente mal ouviu, porque já estávamos voando pela estrada, passando pelo cemitério!
Ana, como se liberta de um feitiço, começou a chorar desesperada, e só se acalmou quando chegamos no sítio e foi recebida pela avó, que ouviu tudo muito preocupada, sem um pingo de dúvidas acerca de toda aquela loucura.
E como se um balde de medo caísse em mim, também chorei.
Sem ter ideia de qual era o risco, eu sabia que tinha vivido algo muito grave, que tinha estado perto da morte e do desespero e, por alguma sorte do destino, tinha escapado para contar essa história.
Depois disso, o dia foi caindo, mas a tensão não sumiu.
Sem explicar nada, dois tias da Ana foram dormir no sítio da velha Deusa, que morava sozinha.
Quando cheguei em Perseverança, me disseram que eles eram do roçado. Mas, naquele momento, descobri que também sabiam das coisas de outros mundos...
Vi todo mundo se preparando.
Era como se uma visita indesejada pudesse chegar naquela noite, e todos tinham medo.
Dona Deusa, ao meu lado, me deu uma pequena bronca:
- Você não pode brincar com o que não sabe. Vocês escaparam.
Mas ela não precisava me dizer aquilo, eu já tinha plena noção.
E a noite chegou no sítio maltratado da Dona Deusa.
Depois do jantar, de uma conversa leve, Ana disse que estava cansada. Ela chegou perto e vi que ardia em febre.
Logo a deitamos numa rede e a avó trouxe algo que ela bebeu sem pensar.
Os tios, na sala, tensos, atentos.
E foi aí, no meio da noite escura, naquele sítio afastado, sem sinal de celular, sem televisão, sem nada... sem vizinhos ou qualquer forma de socorro... com Ana ardendo em febre e talvez delirando... Dona Deusa rezando ao pé da rede e os tios lá, atentos.. que nós ouvimos!
Do meio da mata, do meio do escuro, um assovio fino, baixinho, que foi aumentando, aumentando, até parecer estar dentro de casa, estar dentro da cabeça, uma sensação horrenda de morte, de dor, de medo e de não ter escapatória!!
fiiiii
fiiiiiiiiii
Eu chorava, arrependido.
Dona Deusa, cabeça baixa, se agarrava na neta, fazia carinho nos seus cabelos e rezava.
Os tios, espalhando uma terra nas portas e janelas, falavam ditos que não entendia.
Eu, sem conseguir me mover, só pensava na grande besteira de brincar com o que não conhecia.
Logo, as portas e janelas fechadas começaram a ser socadas e arranhadas, como se centenas de braços e mãos e unhas estivessem a serviço daquilo, um bater tão forte que tudo balançava e, só por milagre, não se arrombava a casa.
"Tem muita coisa que não se explica nessa terra"
Foi quando eu cai, bem ao lado da porta que dava no pátio, e me ajoelhei. Eu tentei rezar, mas não lembrava de nada.
A medida que os ditos dos tios avançavam, parecia que a força que vinha de fora ficava mais fraca, o assovio constante que ia sumindo, lento.
Foi quando, já quase na paz, ouvimos umas unhas que arranhavam lentas a porta da frente, mas arranhavam fundo, e uma voz fraca, quase apagada, sussurrou pela fresta:
- Deusa... não levei antes, não ei de levar agora. A menina fica contigo.
Dona Deusa, aliviada, louvava alto.
- Mas diz ao menino que isso tudo tem dono, que a mata tem dono e não é dessa vivência...
De repente, o sussurro que vinha da porta da frente mudou e passou a vir da porta onde me escorava:
- De toda a forma, filho, obrigado pela carona. Pesou...
E fez-se silêncio!
Deusa restava lá, ao lado da neta desfalecida, agora sem febre, e me olhava brava, mantendo posição de plena atenção.
Os tios, como se alheios a tudo, seguiam nos ditos, reforçando a terra nas portas e janelas, porque as coisas do mata, por vezes, são traiçoeiras...
E eu?
Num átimo de coragem, olhei pela janela e vi...
Um vulto branco que em nada lembrava a velha de antes, andando lentamente pela estradinha que dava acesso ao sítio de Dona Deusa, indo embora sem, dessa vez, pedir oferenda.
naquela noite, a Matinta Pereira não quis dor.
Na manhã seguinte, sem qualquer tipo de conversa, Dona Deusa pediu que eu fosse embora. Ana iria no dia seguinte com o pai, que estava vindo de Belém para buscá-la.
Sem discutir, obedeci, e só consegui respirar aliviado quando cheguei em casa e tranquei a porta.
O namoro acabou, como vocês podem imaginar, sem que eu tivesse plena noção da minha culpa e do risco corrido.
Somente anos depois encontrei Ana novamente, já casada, e foi quando ela me explicou, de forma bem, breve, numa fala ainda cheia de mágoa.
Que, quando criança, Ana zombou do que não devia, desrespeitou o que não devia e, incrédula, negou oferenda em noite escura.
E que, desde então, a Matinta busca a menina, em noites e dias de horror, trancada na segurança da casa, e foi por isso que, cedo, mudou para Belém.
Anos depois, justo comigo, achando-se livre da velha, fui eu o causador do desrespeito, o tudo feito sem pedir licença, sem falar com os donos...
Ana, como se ouvindo o passado, congelada, viu a morte passando bem em frente, até que escapou e nunca mais voltou a Perseverança.
Antes de morrer, Dona Deusa pediu que ela nem voltasse para o enterro, pois, diferente de si, a Matinta nunca morre...
Fim
Essa história me foi contada pela @lorefil, acontecida bem próxima de si.
Os nomes mudaram, mas Perseverança é a mesma... Quem quiser visitar, basta jogar o nome no mapa, pedir licença aos do mato e rio e ir preparado.
Cheguei no consultório, passei álcool gel nas mãos, pisei na bandeja pra limpar sapato e esperei.
O dentista veio sorridente, me cumprimentou e pediu para sentar na poltrona - e eu sentei.
E, mal vi, ele chegou com uma injeção pequenina, dizendo:
- Abra bem a boca.
Eu abri, mesmo incomodado com o tom de voz dele, uma coisa meio maligna...
Mas era impressão minha, com certeza. Talvez o medo de tirar os sisos mudasse minha perspectiva sobre aquele homem sempre tão gentil anteriormente.
Veio a furada, a boca adormeceu, fiquei grogue.
No meio de estar zonzo, não via mais o dentista e sua ajudante. Só via vultos velozes vagando vez ou outra ao meu lado, as vozes distorcidas, como num pesadelo horrendo.
Não conseguia entender bem o que diziam, mas achei ter escutado um “pede pra ele entrar...”
Tudo corria bem naquele voo VASP 375 no dia 29/09/1988.
Ele saiu de Porto Velho, Rondônia, e fez escala em Cuiabá, Brasília, Goiânia e Belo Horizonte, de onde ele voaria para o Rio de Janeiro, aeroporto do Galeão, seu destino final.
Mas as coisas não aconteceram assim...
Decolando de Belo Horizonte, um passageiro se levantou e, armado com um revolver calibre .32, iniciou o sequestro da aeronave.
O passageiro, Raimundo Nonato Alves da Conceição, estava com raiva da política econômica brasileira, dos rumos do país, e por isso resolveu se vingar.
A vingança pretendida:
Sequestrar um avião e jogá-lo contra o Palácio do Planalto, bem no local onde fica o gabinete do Presidente.
Com isso, Raimundo pretendia matar aquele que ele considerava o grande vilão da história: Jose Sarney.
A história que vou contar hoje, faz algum tempo que aconteceu, mas jamais saiu da minha cabeça.
Faz uns 2 anos e era Carnaval.
Nós saímos da nossa cidade, Rio Grande da Serra, para uma cidade bem próxima, Paranapiacaba, onde haveria uma grande festa de rua.
Paranapiacaba, para quem não conhece, é uma antiga vila ferroviária, em estilo inglês, que fica perto de São Paulo.
Ela pouco mudou com o tempo, e conserva todo um aspecto assustador.
Ela é famosa por suas lendas e por sua neblina, que cai sem avisar.
Chegamos na vila por volta de 4 da tarde, tempo de ainda aproveitar bastante a festa, e assim fizemos.
Com várias bandinhas percorrendo as ruas do centro, cerveja barata e gente bonita, a alegria foi garantida até por volta de 23 horas, quando a tal neblina caiu com tudo.
O navio Sobral Santos II, construído em 1957, percorria a hidrovia Solimões-Amazonas sem parar.
Apesar de antigo, em 1981 ele era considerado uma das embarcações mais seguras da região e, talvez por isso, sua tragédia tenha sido tão imensa.
Naquele 18 de setembro de 1981, o Sobral se preparava para sair de Santarém rumo Manaus, com paradas em diversas cidades da beira do rio.
Ainda no porto de Santarém, o Sobral estava absolutamente regular: 200 T de carga e 430 passageiros, tudo de acordo com sua documentação.
Mas as coisas não foram bem assim.
O barco Emerson, que tinha quebrado, ofereceu sua carga ao Sobral e o Comandante aceitou.
Depois, o barco Miranda Dias, também em pane, pediu que o Sobral transportasse seus passageiros e carga, e mais uma vez o Comandante do Sobral disse sim.